Peço-vos, portanto, não aceiteis o que este orador está dizendo, mas, sim, vos sirvais dele como um espelho, no qual vos vedes refletidos tais como sois. Isso pode ser um tanto assustador, mas é necessário vos verdes realmente nesse espelho, a fim de descobrirdes o verdadeiro, sem ser conforme alguma opinião, ou segundo a experiência ou a teoria de outrem. Estamos considerando a questão das relações, questão sumamente importante, porquanto a vida, em todos os seus aspectos, é relação; a vida cessa quando não há relação. O monge que se retira para urna caverna solitária, ou uma cela, ou o que quer que seja, continua a estar em relação, ainda que não pareça. Pode estar em relação com uma idéia, um conceito, uma fórmula; ele continua num estado de relação. E “estar em relação” significa estar ativo no presente, pois de outro modo não há relação. Para a maioria de nós, “relações” significa lembranças de prazeres ou dores acumuladas nas relações com outra pessoa – nas relações entre marido e mulher, entre os filhos, etc. Assim, todas as nossas relações – se as observamos bem – baseiam-se numa imagem. E a imagem é o passado; pode-se-lhe tirar ou acrescentar alguma coisa, mas, no âmago, ela é sempre o passado. Podeis ver muito facilmente como se forma essa relação, essa imagem. Não há necessidade de examinar isso, porquanto o seu mecanismo é bastante óbvio: o pensamento, remoendo o insulto, o prazer, as exigências e apetites sexuais e sua satisfação, etc., formou, a pouco e pouco, essa imagem de prazer e de dor que constitui a essência de todas as relações, sejam as relações entre o homem e a mulher, sejam as relações entre o indivíduo e a comunidade ou entre a comunidade e a nação ou o mundo. Assim, quando se está examinando esta questão das relações, torna-se naturalmente necessário compreender, por inteiro, o processo do pensar. Existe uma relação verdadeira no amor, tal como o conhecemos? No amor, que lugar cabe ao pensamento? Existe amor, se existe pensamento?
E que significação tem o prazer nas relações? – seja o prazer sexual, seja o prazer de estar em companhia de outrem, de viver com outrem, e todos os problemas daí decorrentes. Tende a bondade de observar isso em vós mesmos, em vez de vos limitardes a escutar o que digo. Porque, se o amor é prazer, quando esse prazer é contrariado, há ciúme, ódio, cólera. E pode haver ciúme quando há amor? Todavia, é isso o que acontece: dizemos “Amo-te”, e daí decorre medo, agonia, ansiedade, o desejo de dominar, de possuir, de ser possuído, de dar. Possuir é também uma forma de prazer. Tudo isso se encontra naquilo que chamamos “amor”. Se não existe amor, então que é “relações”? É bem evidente que nós não temos amor. Se houvesse amor, haveria uma educação de espécie totalmente diferente; não estaríamos destruindo os nossos filhos. Portanto, cumpre examlnarmos esta questão do prazer e, examinando-a, depara-se-nos também a questão da dor e do medo. O prazer é mantido e nutrido pelo pensamento. Este é um fato bem simples, que qualquer um, por si próprio, pode observar: a lembrança de um incidente agradável, a que o pensamento dá continuidade hoje e espera ver repetido amanhã. Nesse processo existe o medo de não o termos amanhã, e o desejo de que ele nos seja garantido.
O pensamento, pois, tem uma importância imensa em nossa vida, em nossas relações. O pensamento gera inveja, comparação, ciúme, e por essa razão não estamos de modo nenhum em relação. Quando cada ente humano vive em seu próprio isolamento, em sua própria atividade egocêntrica (ainda que seja casado, tenha filhos, relações sexuais, etc., ele está sempre isolado), como pode haver alguma espécie de relação?
Assim, quando vemos, realmente, e não teoricamente, esse fato, ou o aceitamos tal qual é, acalentamo-lo, damos-lhe polimento e uma enorme significação, ou rejeitamos de todo a sua estrutura, negamos toda essa tradição de relações geradoras de tanto ódio, e ciúme, e antagonismo. E, então, vemo-nos também forçados a perguntar: Porque existe tanto sofrimento neste estado de relação? Porque tem o coração humano de arcar com tão pesado fardo, em todo o mundo, da aldeia mais atrasada à urbe mais “sofisticada”? Pode o sofrimento terminar?
Muito importa fazer esta pergunta. Não devemos acostumar-nos com o sofrimento; e isso é o que faz a maioria de nós. Com ele nos conformamos, aceitamo-lo, ou adoramo-lo, à maneira dos cristãos, simbolizado na Igreja. Mas, nunca indagamos porque existe esse sofrimento; não apenas o sofrimento individual, mas o sofrimento humano, a dor da humanidade, a dor do mundo. O homem que não tem o que comer nem onde abrigar-se é um ente oprimido, sofredor. E o opressor é igualmente sofredor. E sofredor é o sacerdote, tanto quanto o negociante; toda a humanidade leva essa pesada carga de sofrimento. E nós o aceitamos como parte de nossa existência. Quando “aceitamos” qualquer coisa, seja uma coisa muito bela que vemos num quadro, sejam os contornos da montanha ou a árvore toda florida -quando aceitamos qualquer coisa e com ela nos habituamos, nossa mente e nosso coração se embotam, se entorpecem. E nesse estado não existe inocência.
Assim, é possível acabar com o sofrimento? Tem um ente humano, que vive neste mundo, com família, filhos, que vive no isolamento, no desespero, na ansiedade, cheio de “sentimentos de culpa”, etc. – tem esse ente humano alguma possibilidade de libertar-se do sofrimento? Quer dizer, é possível analisar todo o problema do sofrimento – como vem ele, de que fonte brota, como tem continuidade em nossa vida, escurecendo-nos os olhos, o coração, a fala, a visão das coisas? Há necessidade de o analisarmos, passo por passo, examiná-lo, descobrir-lhe a causa? E quando se descobre e compreende a causa do sofrimento, ele se acaba? Claro que não; isso nunca aconteceu. Deve haver, portanto, uma maneira diferente de se alcançar o fim do sofrimento, a compreensão do sofrimento, do sofrimento que o amor produz, do sofrimento que há quando não somos amados pelo ente que desejamos amar, do sofrimento que nos oprime o coração. Pode esse sofrimento terminar, para que possamos viver como seres humanos, com deleite, com beleza, com felicidade, com a Verdade? Isto não é nada de enigmático, procedente do “misterioso” Oriente: é um problema humano.
Antes de tudo, para se pôr fim ao sofrimento é necessário compreender a natureza do tempo, porquanto nós aceitamos o tempo como um meio de superar dificuldades, de resolver dificuldades. O sofrimento existe, e nós dizemos: gradualmente, através do tempo, poderemos, de alguma maneira, afastá-lo de nós. O sofrimento tem fim por meio de tempo – do tempo psicológico e também do tempo cronológico? No tempo cronológico, poderemos habituar-nos com ele, ir-nos conformando com ele, gradualmente, dia por dia. Mas, psicologicamente, interiormente, dizemos para nós mesmos: “Dele me livrarei lentarnente, ou tratarei de esquecê-lo, de racionalizá-lo, de fugir dele.” Positivamente, só há uma maneira de acabar com o sofrimento – mas não por meio da análise, da fuga, da racionalização, e, sim, enfrentando-o, olhando-o, pondo-nos em completa comunhão, em integral relação com ele.
Atentai para isto: quando olhais uma árvore, nunca o fazeis a não ser com a imagem que tendes dessa árvore, com o conhecimento botânico que dela tendes. Vossos olhos a vêem através da imagem do conhecimento, da lembrança ou do prazer; nunca a olhais sem a imagem, sem pensamento, nunca a olhais simplesmente. E tenho certeza de que nunca olhastes vossa esposa ou marido dessa maneira, isto é, sem a imagem que tendes a respeito dela ou dele. E quando olhais para a nuvem, para a ave, para a luz refletida na água, sem a imagem, estais então diretamente em contato com a coisa, não há espaço entre vós e a coisa que estais observando. Fazei-o, uma vez, e vereis, por vós mesmos, o que acontece. O intervalo de tempo entre o observador e a coisa observada, a distância, o espaço, passa por uma extraordinária mudança. Da mesma maneira, olhai o sofrimento, sem tratar de evitá-lo ou de acalentá-lo; olhai-o, ponde-vos inteiramente em contato com ele. E com ele só estareis em contato se lhe dispensardes toda a atenção e cuidado; e só podeis dispensar-lhe toda a atenção se vossa mente estiver quieta. Quando não há resistência ao sofrimento, vê-se que ele passa por uma transformação total; mas isso não significa que aceitais o sofrimento, que com ele vos identificais. Vós sois o sofrimento; não há “vos” e o “sofrimento”. O observador, o pensador, é o pensamento. Ao perceberdes esse fato com o máximo de clareza – não como idéia, porém como realidade, como uma coisa que apalpais, tocais, vedes – notareis que o medo, bem como o sofrimento, chega ao seu fim quando entramos em direto contato com ele.
Cumpre-nos também descobrir individualmente o que é o amor. Como sabeis, muito se fala a respeito dele. Como tem sido deturpada esta palavra, pelo político, pelo teórico, pelo sacerdote, pelo marido, pela mulher – como os entes humanos a têm deturpado, esta bela palavra! Ela está fortemente “carregada”. E para descobrir o que ela significa, não intelectualmente, porém entrando em direto contato com ela, nada se deve fazer. Se alguma coisa se faz, trata-se de ação do pensamento, e o pensamento é velho. O pensamento funciona sempre no campo do “conhecido”. E só quando se está libertado do “conhecido” pode haver inocência, pode haver amor. Compreendeis? Podeis aprender essa frase, mas a palavra não é a realidade. Isso significa, com efeito, que, para amar, não deve haver medo, não deve haver sofrimento. Não se trata aqui do amor por um ou do amor por todos, porém do amor puro e simples. E este só pode nascer quando se compreende inteiramente a atividade do “eu”, do “ego”, com todas as suas invenções, sua solércia, seus absurdos; quando se entra realmente em contato com a futilidade do pensamento.
O pensamento tem seu lugar próprio, tecnologicamente; se não sabeis para onde vos estais dirigindo, não conseguireis chegar a vossa casa; tendes de saber o caminho para lá. Mas, se o amor é produto do pensamento, então, nele se encontra dor, ódio, inveja, divisão. Assim, em verdade, amar significa morrer, não? Morrer para tudo o que se conhece como sendo “eu”. Mas, ninguém quer morrer dessa maneira. Somos todos excessivamente egoístas, excessivamente egocêntricos, com nossas opiniões e juízos, nossa pátria, nossos deuses e crenças. Seria maravilhoso se pudéssemos lançar fora tudo isso, não pela força da vontade ou da determinação, porém simplesmente, vendo-o com olhos que nunca foram contaminados pelo passado, vendo-o de maneira totalmente nova! Quer dizer, vendo o “ego”, o “eu”, com olhos límpidos. Um dos nossos problemas é que somos muito velhos, não fisicamente, talvez, porém velhos em tradição, bem no fundo de nós mesmos, historicamente. Sendo tão velhos, não nos renovamos; a renovação não pertence ao tempo; é o fim do ontem. E, quando finda o ontem, existe o amor nas relações.
18 de maio de 1968.