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ICK – Instituição Cultural Krishnamurti
Desde 1935 divulgando oficialmente os ensinamentos no Brasil
A Instituição Cultural Krishnamurti existe desde 1935 e a sua principal finalidade é traduzir e disponibilizar os ensinamentos de Krishnamurti, com a máxima fidelidade.
Durante anos, a ICK promoveu a tradução e a publicação de livros e vídeos, encontros públicos e discussões em grupos. Entretanto, o advento e a popularização da Internet agora permitem que a Instituição tenha presença virtual relevante entre os estudiosos de Krishnamurti em língua portuguesa.
Continuaremos a promover encontros, mas agora com foco nos virtuais, considerando principalmente a grande dispersão geográfica do nosso público.
“Somente no espelho dos relacionamentos a mente pode ser compreendida” (Krishnamurti)
Queremos que o público encontre em nós uma fonte confiável e autêntica dos ensinamentos e, para tanto, contamos com um grupo de incansáveis colaboradores. Mantemos também contato permanente com as fundações, notadamente a KFT – Krishnamurti Foundation Trust, para conseguir a necessária sinergia para os nossos trabalhos.
Ajudem-nos a manter acesa a chama de Krishnamurti, participando dos nossos encontros virtuais e nos ajudando a ampliar o alcance dos ensinamentos produzindo traduções de vídeos e textos.
Bate-papo e mensagens instantâneas seguros.
Não requer registro, nem precisa instalar nada, pode entrar com a conta do Element, Google, Facebook ou Apple.
Entrem na nossa sala pública Observadores de Krishnamurti e encontrem outros estudiosos dos ensinamentos.
Os ensinamentos são importantes por si mesmos e intérpretes ou comentadores apenas os distorcem, sendo aconselhável ir diretamente à fonte, os próprios ensinamentos, e não se valer de nenhuma autoridade.
Jiddu Krishnamurti
Informamos o falecimento, em 13/07/22, do Sr. Onofre Maximo, que por décadas administrou e protegeu a ICK de sua extinção, por muitas vezes solitário, oferecendo, através do seu zelo contínuo, a oportunidade de traduzirmos um grande volume de material – textos, vídeos e livros – , o que proporcionou o acesso dos falantes da língua portuguesa à grande parte da mensagem de Krishnamurti.
Estaremos posteriormente dando continuidade ao trabalho da ICK para adaptá-lo mais plenamente às novas formas de comunicação digital.
Agradecemos a todos os tradutores e revisores que colaboraram, durante todas essas décadas, e à nossa querida colaboradora e tradutora Maristela Nicolellis, que coordena a equipe atual, tornando possível a disponibilização da mensagem de Krishnamurti aos falantes da língua portuguesa. Esse trabalho incansável já produziu mais de 200 traduções, disponíveis no canal oficial da Krishnamurti Foundation Trust (kfoundation.org/1/pt-video), oferecendo a todos uma oportunidade de descobrir uma nova maneira de viver.
ICK
A ICK, em parceria com a KFT, acaba de publicar pela Amazon o seu primeiro ebook. Trata-se de “O findar do tempo”, que já constava do nosso catálogo de livros físicos há algum tempo e agora está sendo disponibilizado em formato eletrônico, atingindo assim um maior número de leitores e proporcionado a economia que esse tipo de publicação traz.
Estes diálogos entre Jiddu Krishnamurti e o físico teórico David Bohm começaram por abordar a origem do conflito humano. Ambos concordaram em atribuir isto à natureza separatista e presa ao tempo do self e à forma com que ela nos condiciona a confiar erroneamente no pensamento, que está baseado na experiência passada inevitavelmente limitada. A possibilidade do insight que terminará com esta mentalidade defeituosa foi discutida em profundidade. O foco então mudou para uma investigação do significado da morte, e uma discussão investigando as razões do ser e o lugar da consciência no universo. Os diálogos finais revisam o vínculo profundo que Krishnamurti e Bohm viram entre estas questões essenciais e a vida do dia a dia, e o que podemos fazer sobre as barreiras que se encontram no caminho. Ajuda – não palavras. Como você ajudaria outra pessoa a chegar a isso? Entende o que estou tentando dizer?
O Centro de Estudos de Tiradentes – MG, organiza periodicamente encontros para diálogos e vivências para pessoas ou grupos interessados em aprofundar os temas abordados por Jiddu Krishnamurti. O Centro, que conta com acomodações e serviços de estadia, além de um bom acervo de livros, fitas e DVDs, desenvolve também trabalhos na área social-pedagógica.
Detalhes do local e maiores informações sobre os próximos encontros podem ser feitas diretamente com a responsável pelo projeto, Prof. Rachel Fernandes, através da homepage do Centro – www.centrokrishnamurti.com.
Além disso, o Centro de Estudos está aceitando propostas de parcerias para desenvolver estas atividades de convivência como também outros projetos afins. O encaminhamento de proposições pode ser feito também através do site ou diretamente com a responsável.
Desde a criação da Ordem da Estrela do Oriente, a Sra. Emily Lutyens, Representante da mesma em Londres, e sua filha Mary Lutyens, acompanharam a vida do Sr. J. Krishnamurti, viajando com ele freqüentemente para várias partes do mundo, e puderam reunir dados a seu respeito.
Em virtude da grande amizade e confiança de Krishnamurti em relação às duas Senhoras, ele sempre lhes escrevia relatando acontecimentos íntimos. Sabia também que elas tudo registravam num Diário, para objetivos póstumos.
Além disso, receberam as informações reunidas pelo Sr. Shiva Rao, antigo membro do Parlamento indiano, que, igualmente, por longo tempo, convivera com J. Krishnamurti. Pretendia escrever a biografia dele, mas faleceu antes de cumprir seu intuito.
Com a morte da Sra. Emily Lutyens, coube à sua filha, Mary Lutyens, escrever as obras intituladas: “Krishnamurti – The Years of Awakening” (Os Anos do Despertar); “Krishnamurti – The Years of Fulfilment (Os Anos de Plenitude) e “Krishnamurti – The Open Door (A Porta Aberta).
No livro Palestras em Auckland, 1934″, diz Krishnamurti: (…) E vós vos tendes preparado (…) e não importa que eu seja o Instrutor ou não. Ninguém vô-lo pode dizer, (…) porque nenhuma outra pessoa pode sabê-lo, exceto eu próprio; e, mesmo assim, eu vos digo que isso não importa. Jamais contradisse isso, apenas digo: deixai isso de parte”. (…) (pág. 101-102)
Em “A Fonte da Sabedoria” (Palestras em Eerde, Acampamento de Ommen, Holanda, de 1926-1928), sob o epígrafe “Quem traz a Verdade”, revela Krishnamurti os encontros que teve em sua ascensão espiritual:
Quando, no entanto, eu era rapazinho, costumava ver Shri Krishna (…) tal como é desenhado pelos hindus, pois minha mãe era devota de Shri Krishna. (…) Quando, crescendo em idade, encontrei o Bispo Leadbeater e a Sociedade Teosófica, comecei a ver o Mestre K.H. e, desde então, o Mestre K.H. era para mim a finalidade.
Segue: Mais tarde ainda, e à medida que ia crescendo, comecei a ver o Senhor Maitreya (nome do Senhor Cristo na Índia). Foi isto há dois anos e via-O constantemente na forma que perante mim era colocada. (pág. 57)
Faço-vos esta narrativa, não para obter autoridade nem criar uma crença, (…). Foi para mim uma luta constante encontrar a verdade, pois não me sentia satisfeito com a autoridade de outrem. Quis por mim próprio descobrir e, naturalmente, tive de passar por sofrimentos para achar o que buscava. (pág. 57)
Ultimamente tem sido o Senhor Buddha a quem tenho visto e tem sido meu deleite e minha glória o estar com Ele. (pág. 57)
Tem-me sido perguntado o que entendo pelo “Bem Amado”. Dar-vos-ei um significado, uma explicação que interpretareis como vos aprouver. Para mim, é tudo – é Shri Krishna, é o Mestre K.H., é o Senhor Maitreya, é o Buddha e, no entanto, está para além de todas essas formas. (pág. 57)
Que importa o nome que Lhe derdes? Lutais pelo Instrutor do Mundo, por um nome? O mundo nada sabe acerca do Instrutor; alguns dentre nós, individualmente, sabem: alguns acreditam por autoridade; outros têm sua própria experiência e conhecimento próprio.(…) (pág. 57)
Disse a mim próprio: enquanto não me unificar com todos os Instrutores, que eles sejam os mesmos é coisa que não tem importância, se Shri Krishna, Cristo, o Senhor Maitreya são uma só pessoa, é coisa também sem grande conseqüência. (pág. 58)
Disse a mim mesmo: enquanto eu os vir no exterior, como em um quadro, uma coisa objetiva, estou separado, estou afastado do centro; quando, porém, tiver a capacidade, a força, quando tiver determinação, quando estiver purificado e enobrecido, então essa barreira, essa separação desaparecerá. Não fiquei satisfeito enquanto esta barreira não foi despedaçada, a separação não foi destruída. (…) (pág. 58)
Falei de vagas generalidades, que todos precisavam ouvir. Nunca disse: Eu sou o Instrutor do Mundo; agora, porém, que sinto que sou uno com o Bem Amado, eu o digo, não a fim de vos impor minha autoridade, ou para vos convencer de minha grandeza ou da grandeza do Instrutor do Mundo, nem mesmo da beleza da vida ou da simplicidade da vida, mas simplesmente para despertar o desejo em vossos corações e em vossas mentes de buscardes a Verdade. (…) (pág. 58-59)
Daí estar eu capacitado para vos dizer que sou uno com o Bem Amado – quer o interpreteis como sendo o Buddha, o Senhor Maitreya, Shri Krishna, o Cristo, ou qualquer outro nome. (pág. 59)
No panfleto “Que o Entendimento Seja Lei” (conferência em Eerde, Ommen, Holanda, 1928) diz:
“Repito que não tenho discípulos. Cada um de vós é discípulo da Verdade, desde que compreenda a Verdade e não se ponha a seguir outros indivíduos. Não tenho seguidores.
“Espero que não considereis a vós mesmos como meus seguidores, porque, se o fizerdes, estareis pervertendo e traindo a Verdade que eu defendo. (…) (pág. 4)
(…) Não há compreensão no culto das personalidades. Os rótulos que adorais carecem de significação. (…) A Verdade transcende todas as graduações, porquanto essas graduações só existem por causa das limitações humanas. (pág. 5)
(…) Eu sei o que sou; sei qual é a minha finalidade na Vida, porque sou a própria Vida, sem nome, nem limitação.
E porque sou a Vida, desejo instar-vos a adorar essa vida, não na forma que é Krishnamurti, porém a vida que reside dentro de cada um de nós. (…)” (pág. 16)
Em outro opúsculo “A Finalidade da Vida” (Conferência em Eerde, Ommen, Holanda, 1928): “Não desejo que me rendais culto; não desejo que acrediteis no que digo; não desejo que façais de mim um santuário para vosso refúgio; (…) Porque o que vedes de mim, esta personalidade, este corpo, é coisa irreal, sujeita ao declíneo perecível.” (…) (pág. 19)
Também em “A Arte da Libertação: “Pergunta: Não sois vós mesmo um guru?” Resposta: Podeis fazer de mim um guru, mas eu não o sou. Não quero ser guru, pela simples razão de que não há caminho para a verdade. (…) A verdade é uma coisa viva, e para uma coisa viva não há nenhum caminho. (…) Porque a verdade não tem caminho, para a descobrirdes tendes de ser aventuroso, estar pronto para o perigo; e pensais que um guru vos ajudará a ser aventuroso, a viver no perigo? (…) (pág. 123-124)
Entrevista de Krishnamurti em Londres, 20-06-1928 (Boletim Internacional da Estrela, de agosto de 1928): “Senhor, eu o tenho dito (…) Krishnamurti, como tal, não mais existe. Assim como o rio entra no oceano e nele se perde, assim Krishnamurti entrou naquela vida (…). Assim (…) entrou nesse Oceano da Vida e é o Instrutor, pois no momento em que se entra nessa Vida – que é cumprimento de todos os Instrutores – o indivíduo como tal cessa de existir”. (pág. 20-21)
De novo, em “Que o Entendimento seja Lei”: “Pergunta: Sois o Cristo de volta ao mundo? – Resposta: Amigo, quem julgais que eu sou? (…) Não estais interessado na Verdade; estais interessado no vaso que contém a verdade (…). Eu vos digo que possuo essa água pura; possuo o bálsamo que purifica e que cura soberanamente. E me perguntais: Quem sois? – Eu sou todas as coisas – porque sou a Vida.” (pág. 21-22)
Igualmente, em “Palestras em Auckland, 1934” – “Pergunta: Sois o Messias?
Krishnamurti: Tem isso grande importância? Esta é (…) uma das perguntas que me têm sido feitas por toda parte (…). Ora, eu jamais neguei ou afirmei ser o Messias, o Cristo que voltou; (…) Ninguém vô-lo pode dizer. Mesmo que eu o dissesse, isso seria (…) destituído de valor (…). (Palestras em Auckland, 1934, pág. 120)
Continua: “Assim, pois, (…) esforçai-vos para averiguar se o que estou dizendo é verdadeiro; (…) desembaraçar-vos-eis de toda autoridade, (…). Para os seres humanos realmente criadores, inteligentes, não pode haver autoridade. (…)” (Idem, pág. 121)
Da mesma forma, em “Novo Acesso à Vida”: “Pergunta: Como pretendeis justificar (…) que sois o Instrutor do Mundo?
Resposta: Não tenho interesse algum em justificá-lo. Não é o rótulo que importa, Senhores. O grau, o título não tem importância alguma: o que tem importância é o que sois.
Rasgai o título, pois, jogai-o na cesta de papéis, queimai-o, destruí-o, livrai-vos dele. (…)
Senhores, os títulos, sejam títulos espirituais, sejam títulos mundanos, são meios de explorar os outros. (…)” (pág. 45)
E ainda, em “Uma Nova Maneira de Viver”: “Pergunta: A S.T. anunciou que vós sois o Messias e o Instrutor do Mundo. Por que deixastes a S.T. e renunciastes ao título de Messias?
Krishnamurti: Agora, com relação ao título de Messias, a questão é muito mais simples. Eu nunca o neguei, e acho que não tem muita importância se o fiz ou não. O que para vós deve importar é se o que digo é ou não a verdade.”
Segue: “Portanto, não vos deixeis levar pelo rótulo, (…). Se eu sou o Instrutor do Mundo ou o Messias, ou o quer que seja, isso não tem importância nenhuma. Se o achais importante, perdereis então a verdade do que estou dizendo, porque estais julgando pelo rótulo. (…) Um dirá que sou o Messias, outro dirá que não sou, e onde ficais? (…)” (pág. 149)
Por fim, em “Palestras na Itália e Noruega”, 1933. “Pergunta: Foi dito que sois a manifestação do Cristo em nossos dias. Que tendes a dizer sobre isto?
Krishnamurti: Meus amigos, por que fazeis semelhante pergunta? (…) Perguntais porque quereis (…) julgar o que digo de conformidade com o padrão que possuís. (…) Isto é de mui pequena importância e, além disso, como poderíeis saber o que sou ou quem sou, mesmo que eu vô-lo dissesse? (…)” (pág. 66)
Continua: “Desejais saber quem sou em virtude de estardes incertos (…). Não estou afirmando ser ou não o Cristo. (…) para mim a pergunta carece de importância. O que é importante é saberdes se o que digo é verdadeiro; ( … )” (pág. 66-67)
Segundo informações constantes da obra “Krishnamurti – Os Anos do Despertar”, de Mary Lutyens (Ed. Cultrix, S.Paulo, 1978), teria o Mestre Universal começado a manifestar-se em Krishnamurti por ocasião de reuniões importantes, com a presença de grande público, nos anos de 1925, 1926, 1927. (pág. 226, 227, 242, 278, 280).
À página 221, inicia a autora o capítulo “A Primeira Manifestação”. Trata do Congresso da Estrela, na Índia, que teve lugar em Adyar, Índia, em 28-12-1925. (No artigo “Uma Explicação”, de Annie Besant, publicado em “O Teosofista” nº 155, de março de 1927, são confirmados os aparecimentos acima, e é informado que o Congresso da Estrela, de 1925, teve a presença de 7.000 pessoas).
No certame, estava Krishnamurti no final do discurso quando, referindo-se ao Mestre universal, disse:
“Ele só vem para os que querem, que desejam, que anseiam (…)”; e, de súbito, sua voz se modificou completamente e soou: “Eu venho para os que querem simpatia, os que desejam felicidade, os que anseiam libertar-se (…). Venho para reformar e não para destruir, não venho demolir, senão construir.”
Registra Mary Lutyens que muitos notaram não só a alteração para a primeira pessoa, como uma diferença de voz. A Sra. Annie Besant, Leadbeater e Raja (Jinarâjadâsa) tiveram perfeita consciência da mudança. Na reunião final do congresso, teria a Sra. Besant declarado:
“(…) Este acontecimento (de 28 de dezembro) marcou a consagração definitiva do veículo escolhido (…) a aceitação final do corpo eleito há muito tempo (…). O advento começou (…)” (pág. 226-227)
Igualmente, no livro “Krishnamurti – Los Años de Plenitud” (Ed. Edhasa, Barcelona, 1984) se lê que, em 1927, escrevia Krishnamurti ao Sr. C.W. Leadbeater: “Eu conheço meu destino e meu trabalho. Sei com certeza, e com meu próprio conhecimento, que me estou fundindo na consciência do Mestre, e que Ele há de encher plenamente meu ser”. (pág. 14)
Nessa mesma fonte (“Los Años de Plenitud”) consta que a Sra. Besant, então acompanhada de Krishnamurti, teria feito declaração à Imprensa, nos E.U.A, assim concluindo:
“O Instrutor do Mundo está aqui” (pág. 14). Nas páginas 3, 12, 15, 249 desse livro, é repetida a 1ª manifestação do Instrutor universal em 28-12-1925, e outras em 1926 e 1927.
Ambas as obras acima fazem constantes referências a um “processo” de adaptação física, psíquica e espiritual, a que teria estado submetido Krishnamurti durante toda a sua vida. “Os Anos do Despertar”, pág. 169, 174-191; “Los Años de Plenitud”, pág. 8, 36, 37, 73, 119, 121-126, 150, 184, 255. O “processo” consta igualmente do “Diário” de Krishnamurti, vol. I e II.
Em algumas sessões do “processo”, e mesmo em outras ocasiões, foi revelada a presença, quer dos Senhores Maitreya e Buddha, quer do Mestre K.H. Dos textos, deduz-se que o processo tinha como objetivo não só a evolução individual de Krishnamurti, como a adaptação de seus veículos para a fusão de sua consciência com a do Senhor.
Verifica-se isso também em: “Os Anos do Despertar”, pág. 48, 160-167, 179-181, 189, 196-197, 209, 225-227, 242, 250-251, 255-256); “Os Anos de Plenitude”, pág. 12-13, 121, 125-126, 243, 245, 253).
Nesta noite, vamos percorrer um longo caminho. Ontem estivemos tratando do sofrimento e do findar do sofrimento. Quando o sofrimento chega ao fim, há paixão. Pouquíssimos de nós realmente compreendem a questão do sofrimento ou nela penetram profundamente. Será possível liquidar, de vez, o sofrimento? Todos os seres humanos têm feito essa pergunta, embora, talvez, não muito conscientemente, mas, no fundo, todos querem saber se a dor e o sofrimento humano podem acabar. Enquanto o sofrimento não termina, não pode haver amor.
O sofrimento é um violento golpe no sistema nervoso, como um soco no corpo e na psique. E geralmente tentamos escapar dele através de drogas, bebida, movimentos religiosos – ou, então, acabamos cínicos ou passamos a aceitar as coisas como inevitáveis.
Será que podemos investigar, a fundo e com seriedade, se é possível ficar com o problema sem fugir dele? Suponhamos que perca meu filho e, sofrendo com isso um grande choque, experimentando uma dor imensa, descubra que sou um ser humano extremamente solitário. Não consigo encarar nem suportar a situação e, por isso, fujo dela. Há inúmeras formas de fuga – religiosas, mundanas ou filosóficas. Mas será que posso permanecer com o que aconteceu, com essa coisa chamada sofrimento, sem procurar, de modo algum, fugir da dor, da angústia, da solidão, da aflição, do abalo? Será que podemos observar um problema, observá-lo apenas, sem procurar resolvê-lo, olhar para ele como se fosse uma jóia preciosa, de fino acabamento? Para uma coisa bonita olhamos sem parar, sem qualquer desejo de fugir dela; sua beleza nos atrai tanto e tanto prazer nos proporciona que ficamos olhando para ela o tempo todo. Se, da mesma forma, pudermos observar nosso sofrimento, sem um movimento sequer de julgamento ou fuga, ficar com a tristeza… nesse caso, a própria ação de ficar com o fato nos liberta completamente daquilo que produziu a dor. Voltaremos a isso depois.
Desejamos também considerar o que é a beleza – não a beleza de uma pessoa nem de quadros e estátuas de museus, nem os mais remotos esforços do homem para transmitir seus sentimentos através da pedra, da pintura ou de um poema, mas indagar a nós mesmos o que é a beleza. Talvez a beleza seja a verdade. Talvez seja o amor. Sem compreendermos a natureza e a profundidade dessa coisa extraordinária que é a beleza, jamais chegaremos ao que é sagrado. Examinemos, portanto, a questão da beleza.
O que acontece quando vemos algo grandioso como a montanha coberta de neve contra o céu azul? Por um segundo a majestade da montanha, com sua imensidão, com seu belo recorte contra o céu azul apaga toda nossa preocupação com nós mesmos. Nesse segundo, não há “ninguém” a olhar. Por um segundo, a grandiosidade da montanha afasta todo sentimento egocêntrico do nosso viver. Certamente que já devem ter notado isso. Já observaram uma criança com um brinquedo? Durante o dia inteiro ela fez travessuras (o que é normal), e então damos um brinquedo a ela. Agora, por um bom tempo, até que escangalhe o brinquedo, ela permanece tranqüila; o brinquedo dissipou sua agitação, absorveu-a. Assim também quando vemos algo extremamente belo – a beleza nos absorve? Significa isso que só há beleza quando cessa a luta do eu, quando não existe mais egocentrismo. Compreendem isso? Se não ficamos absorvidos nem impressionados por algo muito belo, como uma montanha ou um vale cheio de sombras; se não somos arrebatados pela montanha, podemos compreender a beleza sem o ego? Quando o eu está presente, não há beleza; quando existe egocentrismo, não há amor; e o amor e a beleza estão sempre juntos – não são duas coisas separadas.
Temos de tratar também da morte. Isso é uma coisa que todos precisamos encarar. Sejamos ricos ou pobres, ignorantes ou eruditos, jovens ou velhos, a morte é inevitável para todos nós; todos vamos morrer. E nunca fomos capazes de compreender a natureza da morte; estamos sempre com medo de morrer, não estamos? Para compreender a morte temos de indagar o que é o viver, o que é a nossa vida, pois estamos desperdiçando a nossa vida, estamos desperdiçando nossas energias de muitas maneiras, nas muitas profissões especializadas. Pode ser que sejam ricos, muito competentes, que sejam especialistas, um grande cientista ou um homem de negócios; pode ser que tenham poder, posição, mas, no fim da vida, será que tudo isso não foi um desperdício? Toda essa lida, sofrimento, essa enorme ansiedade e insegurança, as tolas ilusões que o homem acumulou (deuses, santos, etc.), não será tudo isso um desperdício? Por favor, essa é uma pergunta séria, que cada um tem de fazer a si próprio. Ninguém pode responder por nós. Costumamos separar o viver do morrer. A morte fica lá no fim da vida; nós a colocamos o mais longe possível – depois de muito tempo. Mas, ainda que seja uma longa jornada, temos de morrer. E o que é isso a que chamamos viver – ganhar dinheiro, ir ao escritório das nove às cinco? E com isso sofremos interminável conflito, temor, ansiedade, solidão, desesperança, depressão. Mas será que toda essa existência a que chamamos vida, viver (essa imensa vicissitude do homem com seu conflito sem fim, decepção, degradação) – será isso viver? Mas é a isso que chamamos viver; é isso que conhecemos, é como isso que estamos familiarizados, essa é a nossa existência diária. E a morte significa o fim de tudo, o findar de tudo que pensamos, acumulamos e gozamos. E vivemos apegados a tais coisas. Estamos apegados à família, ao dinheiro, aos conhecimentos, às crenças com as quais temos convivido, aos ideais. Estamos apegados a tudo isso. E a morte vem e diz: “Esse é o fim de tudo, meu velho”.
Tememos morrer, isto é, deixar tudo que conhecemos, tudo que experimentamos, reunimos – nossa encantadora mobília e a bela coleção de quadros de pintura. A morte chega e diz: “Nada mais lhe pertence.” É por isso que nos apegamos ao conhecido e tememos o desconhecido. Podemos inventar a reencarnação, que devemos renascer numa próxima vida. Mas nunca indagamos o que nasce na vida seguinte. O que renasce é um feixe de memórias.
A pergunta, portanto, é esta: por que o cérebro separou o viver (que é conflito e tudo o mais) do morrer? Por que essa divisão? Existe essa divisão quando há apego? Podemos viver no mundo moderno com a morte? Não estamos falando de suicídio, mas em acabar com o apego (e isso é a morte) enquanto vivemos. Estou apegado à casa em que vivo – comprei a casa por um bom dinheiro e apego-me ao mobiliário, aos quadros, à família, a todas essas memórias. Então chega a morte e acaba com tudo. Mas será que podemos conviver diariamente com a morte, dando um fim a tudo no fim de cada dia, eliminando todo nosso apego? Isso é o que significa morrer. Como costumamos separar o viver do morrer, estamos sempre com medo. Quando levamos juntos, contudo, a vida e a morte, o viver e o morrer, então descobrimos que há um estado cerebral em que cessa todo conhecimento como memória.
Precisamos do conhecimento para escrever uma carta, vir até aqui, falar inglês, fazer a contabilidade, ir para casa etc. Mas será que podemos usar o conhecimento sem sobrecarregar a mente? Poderá o cérebro usar o conhecimento quando necessário, mas estar livre de todo conhecimento? Nosso cérebro está sempre registrando; agora mesmo estão registrando o que se está dizendo. O registro torna-se memória e a memória, nesse registro, é necessária em certo domínio, no domínio da atividade física. Por conseguinte, pode o cérebro usar o conhecimento quando necessário mas estar livre do velho conhecimento? Pode o cérebro estar livre para funcionar perfeitamente noutra dimensão? Todos os dias, portanto, quando forem dormir, eliminem tudo que acumularam; morram no fim do dia.
E então ouvimos uma declaração como esta: viver é morrer; viver e morrer não são duas coisas diferentes. Se não ouvirem essa declaração com os ouvidos apenas, se estiverem escutando com muita atenção, perceberão a verdade do fato, perceberão a realidade. E, imediatamente, verão como isso é claro. Assim, será que, no fim do dia, podemos morrer para tudo que não for necessário? Morrer para a lembrança de nossas mágoas, nossas crenças, temores, ansiedades, infortúnios – será que podemos pôr fim a tudo isso diariamente? E aí descobrimos que estamos vivendo com a morte o tempo todo, pois a morte é o fim.
Precisamos, de fato, investigar essa questão do findar. Nunca terminamos, definitivamente, coisa alguma; só quando conseguimos alguma vantagem com isso, alguma recompensa. Mas, será que podemos viver assim no mundo de hoje – liquidando tudo voluntariamente, sem pensar no futuro, sem esperar por algo “melhor”, ter, portanto, uma maneira holística de viver, vivendo e morrendo a cada momento? Estamos tratando juntos de coisas que o homem se vem ocupando há um milhão de anos – o viver e o morrer. Temos, portanto, de examinarmos juntos o problema e não reagir a ele, dizendo: “É, mas eu creio na reencarnação” – pois, nesse caso, termina o diálogo entre nós.
Estamos apegados a um mundo de coisas – ao nosso guru, ao conhecimento acumulado, ao dinheiro, às crenças com que temos vivido, aos ideais, à memória de nosso filho ou filha e por aí afora. Nós somos a memória. Nosso cérebro é todo memória – não somente a memória dos conhecimentos recentes mas também a dos remotos, a memória profunda que conserva o que foi o animal, o macaco. Fazemos parte dessa memória e estamos apegados a toda essa consciência. Certo? Isso é um fato. Aí chega a morte e diz: “Acabou o seu apego.” E nós tememos tal coisa, tememos ficar completamente libertos disso tudo. A morte, no entanto, retira de nós tudo que adquirimos. Podemos inventar e dizer: “Sim, mas eu continuo na próxima vida.” Mas o que é que continua? Compreendem a pergunta? Que significa o desejo de continuar? Haverá alguma espécie de continuidade a não ser a da sua conta bancária, ir diariamente ao escritório, a rotina do culto e a continuidade das crenças – tudo que o pensamento criou?
O pensamento é limitado e, assim, cria conflito – já vimos isso. E o eu, o ego, a persona é um complicado feixe de memórias, antigas e recentes. Vivemos de memórias. Vivemos do conhecimento, adquirido ou herdado; somos o produto do conhecimento. O eu é o conhecimento resultante das experiências passadas, dos pensamentos etc. Isso é que é o eu. O eu pode inventar que há algo divino em nós; mas isso ainda é atividade do pensamento. E o pensamento é sempre limitado. Podem ver isso por si mesmos; não precisam ler livros nem estudar as filosofias; podem perceber claramente por si próprios que são um feixe de memórias. E a morte põe fim a toda memória. Eis porque ficamos atemorizados. A questão, portanto, é esta: podemos conviver com a morte no mundo moderno?
Agora devemos também examinar juntos o que é o amor. Será que o amor é sensação? Será desejo? Será prazer? Será coisa criada pelo pensamento? Será que amam a esposa ou o marido ou os filhos? Será que o amor é ciúme? Não digam que não. Será que o amor é medo, ansiedade, sofrimento e tudo mais? O que é o amor? E sem esse quê, esse perfume, essa chama (ainda que sejam ricos, tenham poder, posição, importância) sem amor, serão apenas uma concha vazia. Precisamos, por conseguinte, aprofundar essa questão do amor. Se amassem seus filhos, haveria guerras? Se amassem seus filhos, permitiriam que eles matassem outros? Pode haver amor quando existe ambição? Por favor, enfrentem tudo isso. Mas não conseguimos porque estamos presos a uma rotina, à sensação repetida de sexo etc.
O amor nada tem que ver com prazer, com sensação. O amor não provém do pensamento; não faz parte, por isso, da estrutura do cérebro. É algo que está completamente fora do cérebro, pois o cérebro, por sua própria natureza, é instrumento da sensação, das reações nervosas etc. Quando há sensação, não existe amor. O amor não é coisa da memória.
E temos que discutir sobre a vida religiosa e a religião. Essa é uma questão muito complexa. Os seres humanos vêm buscando alguma coisa que esteja além do mundo físico, além da existência diária do sofrimento, dor ou prazer. Têm buscado algo transcendente, primeiro nas nuvens, sendo o trovão a voz de deus. Depois, cultuaram árvores, pedras – e os aldeões que vivem longe desta feia e detestável cidade ainda veneram pedras, árvores, pequenas imagens. O homem deseja saber se existe alguma coisa sagrada e, então, chega o sacerdote e diz: “Vou-lhe mostrar” – é exatamente o que faz o guru. Os sacerdotes do Ocidente possuem seus rituais, frases de repetição, roupas ornamentadas e o culto a imagens. E os daqui também têm suas próprias imagens. Há os que não acreditam em nada disso; são ateus e se dizem humanitaristas. Mas os que ouvem a este que fala querem descobrir se há algo fora do tempo, além do pensamento. Vamos, portanto, investigar juntos, exercitar nosso cérebro, nossa razão, nossa lógica para averiguar o que é religião, o que é vida religiosa e se é possível viver uma vida religiosa neste mundo moderno.
Investiguemos, por conseguinte, para descobrir o que, de fato e verdadeiramente, é a vida religiosa. E só podemos descobrir isso quando compreendemos o que são as religiões e as descartamos totalmente – não quando pertencemos a uma religião, a uma organização, um guru ou determinada autoridade que se diz espiritual. Não há autoridades espirituais; esse é um dos crimes que cometemos: inventar um mediador entre nós e a verdade.
Quando indagamos o que é religião, nessa própria indagação já estamos vivendo religiosamente; não no fim dela. No processo mesmo de olhar, observar, discutir, duvidar, objetar, não ter crença nem fé, nessa própria investigação já estamos levando uma vida religiosa. Vamos fazer isso agora.
Tratando-se de assunto religioso, parece que perdem a razão, a lógica, o bom senso. Precisamos, portanto, ser lógicos, racionais, descrentes, indagadores em relação a tudo que o homem criou – deuses, salvadores, gurus e toda sua autoridade; precisamos eliminar, completamente, tudo isso. Nada disso é religião; é apenas a autoridade que alguns poucos assumem. Nós é que lhes conferimos autoridade.
Já notaram que, sempre que há desordem social e política nas relações humanas, aparece um déspota, um ditador? Temos recentes exemplos disso. Sempre que há desordem em nossa vida, criamos uma autoridade; somos responsáveis pela autoridade e existem pessoas prontas a aceitar essa autoridade. Sempre que há medo, inevitavelmente o homem procura um meio de se proteger, de se manter em segurança, uma vez que ele se sente atemorizado. E é por causa desse medo que inventamos deuses. Por causa desse medo é que inventamos os rituais e todo esse circo a que damos o nome de religião. Todos os templos neste país, todas as igrejas e mesquitas, tudo isso foi o pensamento que criou. Podem afirmar que há uma revelação sem jamais duvidarem de tal coisa. Mas ponham em dúvida essa revelação. Acontece que aceitam; se usarem, contudo, a lógica, a razão, o bom senso, perceberão como acumulam superstições – e nada disso, obviamente, é religião. Será que podem descartar tudo isso para descobrir a essência da religião, qual é a mente, o cérebro, capaz de viver religiosamente? Será que podem, como seres humanos cheios de temor, viver sem inventar nada, sem criar ilusões, e enfrentar o medo? O medo psicológico pode desaparecer completamente quando ficamos com ele, sem fugir dele, dando a ele total atenção. É como lançar um jato de luz sobre o medo, um forte jorro de luz; o medo se extingue por completo. E, quando não há medo, já não há mais deuses, já não mais rituais, pois tudo isso se torna desnecessário, estúpido. As coisas que o pensamento inventa nada têm que ver com religião, pois o pensamento não passa de um processo material resultante da experiência, do conhecimento e da memória. É o pensamento que inventa todo o palavrório e estrutura das religiões organizadas, que já perderam totalmente a significação. Será que, voluntariamente, podem rejeitar tudo isso sem esperar por uma recompensa? Será que querem fazer isso? Se fizerem, então ninguém mais perguntará o que é religião.
E haverá alguma coisa que ultrapasse o tempo e o pensamento? Podem fazer essa pergunta mas, se o pensamento inventar que existe algo transcendente, isso ainda constitui um processo material. O pensamento é um processo material que acumula o conhecimento nas células cerebrais. O orador não é cientista, mas podem ver isso em si mesmos, podem observar em seu próprio cérebro a atividade do pensamento. Desse modo, se puderem desfazer-se de tudo isso voluntariamente, sem oposição nem resistência, nesse caso, inevitavelmente, indagarão: existirá algo que esteja além do tempo e do espaço? Haverá algo jamais visto antes por qualquer outro homem? Haverá algo imensamente sagrado? Haverá algo jamais tocado pelo cérebro? E é isso que vamos descobrir, se é que já deram o primeiro passo, o de varrer completamente toda essa baboseira chamada religião. Quando usam o cérebro e a lógica, podem duvidar, indagar.
Assim, o que significa a meditação que faz parte da religião? O que é meditação? Será fugir do tumulto, ter uma mente silenciosa, uma mente tranqüila e pacífica? E, para ficarem atentos, para manterem os pensamentos sob controle, praticam um sistema, um método, um processo. Sentam-se de pernas cruzadas e repetem um mantra qualquer. Disseram-me que essa palavra, etimologicamente, significa “ponderar”, “não vir a ser”, “absorver”, “eliminar toda atividade egocêntrica”. Mas nós repetimos, repetimos, repetimos e continuamos vivendo egocentricamente, egoisticamente, pois mantra perdeu o significado.
O que é, pois, meditação? Será um esforço consciente? Costumamos meditar conscientemente, praticar a fim de conseguir alguma coisa – uma mente ou um cérebro tranqüilo, um estímulo para o cérebro. Mas qual é a diferença entre esse meditador e o homem que diz “Quero dinheiro e vou trabalhar para obtê-lo?” Qual é a diferença entre os dois? Ambos estão buscando alguma coisa. Só que a busca de um classificamos de espiritual e a do outro, de mundana. Não obstante, ambos estão buscando algo. Assim, para o orador, isso não é meditação; meditação nada tem que ver com qualquer desejo consciente e deliberado como produto da vontade.
Precisamos indagar, portanto, se há alguma espécie de meditação que não seja produzida pelo pensamento. Haverá alguma espécie de meditação da qual não estejamos consciente? Compreendem isso? Nenhum processo deliberado de meditação é meditação. Isso é tão claro! Podem sentar-se de pernas cruzadas pelo resto da vida, meditar, respirar e praticar tudo mais sem que cheguem sequer perto da outra coisa, pois isso não passa de uma ação intencional para conseguir um resultado – causa e efeito. Mas o efeito torna-se a causa e, assim, acabam presos num círculo. Haverá uma espécie de meditação que não resulte do desejo, da vontade, do esforço? O orador afirma que há. Mas não precisam acreditar nisso; pelo contrário, devem duvidar, indagar, assim como o orador indagou, duvidou, rejeitou. Haverá uma espécie de meditação não planejada nem organizada? Para examinar isso, precisamos compreender o cérebro condicionado, o cérebro limitado, o cérebro que tenta alcançar o ilimitado, o imensurável, o atemporal, se é que existe esse atemporal. E, para isso, é necessário compreender o som. Som e silêncio são inseparáveis.
Costumamos separar o som do silêncio. O som é o mundo; o som é a batida do coração; o universo está repleto de sons; os céus, as milhares de estrelas, todo o firmamento está cheio de som. E consideramos o som uma coisa intolerável. Mas, quando escutamos o som, o próprio ato de escutar é silêncio. O silêncio não se separa do som. A meditação, portanto, não é algo planejado, organizado. A meditação apenas é. Começa com o primeiro passo que é o estar livre de todos os ressentimentos, livre de tudo que já acumulamos – temores, ansiedades, solidão, desespero, sofrimento. Essa é a base, o primeiro passo e o primeiro passo é o último passo. Se derem o primeiro passo, termina tudo. Mas não estamos com vontade de dar esse primeiro passo porque não queremos ser livres. Queremos depender – do poder, de pessoas, do meio-ambiente, de nossa experiência, do conhecimento. Nunca nos libertamos da dependência, do medo.
No findar do sofrimento está o amor. E nesse amor há compaixão. A compaixão tem sua própria inteligência. E quando age a inteligência, atua a própria verdade. Quando essa inteligência está presente, não há conflito. De tudo já ouviram falar – da cessação do medo, do findar do sofrimento, da beleza e do amor. Mas uma coisa é ouvir, e outra, agir. Ouvem tudo isso (que é verdadeiro, lógico, sensato, racional) mas não agem de acordo com isso. Vão para casa e começa tudo de novo – as preocupações, os conflitos, toda a miséria. Assim, perguntamos: qual é a finalidade de tudo isso? Que adianta ouvir este orador e não viver o que ele diz? Quando ouvimos e não agimos, desperdiçamos nossa vida; se ouvirem algo verdadeiro e não agirem, estarão desperdiçando a vida. E a vida é algo muitíssimo precioso – é a única coisa que temos. E acontece que perdemos também contato com a natureza, o que significa que perdemos contato com nós mesmos, parte que somos da natureza. Não amamos as árvores nem os pássaros nem as águas nem as montanhas. Estamos a nos destruir uns aos outros. E tudo isso é desperdício de vida.
Quando percebemos toda essa coisa não apenas intelectualmente nem verbalmente, então vivemos uma vida religiosa. Botar uma tanga, tornar-se pedinte ou entrar para um mosteiro, nada disso é vida religiosa. A vida religiosa começa quando cessa o conflito, quando existe amor. Podemos amar uma pessoa (esposa ou marido), mas aquele amor é para todos os seres humanos, não se destina a uma só pessoa, não é restritivo. Portanto, se empenharem coração, mente e cérebro haverá algo que transcende o tempo. E aí estará a bênção – não nos templos, nas igrejas nem mesquitas. Essa bênção estará onde estivermos.
Krishnamurti. Bombaim. 10/02/1985. K. F. Bulletin 54 (1988) – Carta de Notícias. Janeiro-Dezembro 1991. ICK.
DA INTELIGÊNCIA
Tradução: Daniel Guimarães
Pensamento é da ordem do tempo; inteligência é de uma ordem, de uma qualidade diferente; Está a inteligência ligada ao pensamento? Cérebro, o instrumento da inteligência; pensamento como um ponteiro. O pensamento, e não a inteligência, domina o mundo. O problema do pensamento e do despertar da inteligência. Inteligência operando num contexto limitado pode servir a propósitos altamente não-inteligentes. Matéria, pensamento, inteligência têm uma fonte comum, são uma energia; por que se dividiram? Segurança e sobrevivência: o pensamento não pode considerar a morte de modo apropriado. “Pode a mente manter a pureza de sua fonte original?” O problema do aquietar do pensamento. Insight, a percepção do todo, é necessário. Comunicação sem a interferência da mente consciente.
Professor Bohm:1 Com relação à inteligência, eu sempre gosto de pesquisar a origem da palavra, bem como seu significado. É muito interessante; Inteligência vem de inter e legere, o que significa “ler entre”. Então me parece que se poderia dizer que o pensamento é como a informação num livro e que a inteligência tem que lê-la, ler seu significado. Acho que isso dá uma noção melhor do que seja inteligência.
Krishnamurti: Ler nas entrelinhas.
Bohm: Sim, depreender o significado. Há também um sentido relevante dado no dicionário, que é: estado de alerta mental.
Krishnamurti: Sim, alerta mental.
Bohm: Bem, isso é bastante diferente daquilo que as pessoas têm em mente quando medem inteligência. Agora, considerando muitas das coisas que você tem dito, você diria que inteligência não é pensamento. Você diz que o pensamento tem seu lugar no cérebro antigo, que é um processo físico, eletromecânico; tem sido amplamente provado pela ciência que todo pensamento é essencialmente um processo físico, químico. Então talvez pudéssemos dizer que a inteligência não é da mesma ordem, que ela não é da ordem do tempo, de todo.
Krishnamurti: Inteligência.
Bohm: Sim, a inteligência lê “nas entrelinhas” do pensamento, vê o significado dele. Há um outro ponto antes de começarmos essa questão: se você diz que o pensamento é físico, então a mente, ou a inteligência, ou como quer que queira chamar isso, parece diferente, é de uma ordem diferente. Você diria que há uma diferença real entre o físico e a inteligência?
Krishnamurti: Sim. Estamos dizendo que o pensamento é matéria? Coloquemos isto de forma diferente.
Bohm: Matéria? Em vez disso, eu diria processo material.
Krishnamurti: Tudo bem; o pensamento é um processo material, e qual é a relação entre ele e a inteligência? É a inteligência um produto do pensamento?
Bohm: Acho que podemos estar certos de que não é.
Krishnamurti: Por que estamos certos?
Bohm: Simplesmente porque o pensamento é mecânico.
Krishnamurti: O pensamento é mecânico, isso está correto.
Bohm: A inteligência, não.
Krishnamurti: Então o pensamento é mensurável; a inteligência não. E como acontece de essa inteligência vir a existir? Se o pensamento não possui relação com a inteligência, então, é a cessação do pensamento o despertar da inteligência? Ou o que ocorre é que a inteligência, sendo independente do pensamento, e não sendo do tempo, existiu sempre?
Bohm: Isso levanta muitas questões difíceis.
Krishnamurti: Eu sei.
Bohm: Eu gostaria de dispor essa questão numa estrutura de pensamento que se pudesse conectar a quaisquer pontos de vista científicos que possam existir.
Krishnamurti: Sim.
Bohm: Até para mostrar que ela é cabível ou que não é. Então você diz que a inteligência pode ter existido eternamente.
Krishnamurti: Eu estou perguntando – ela existe eternamente?
Bohm: Pode ser que sim e pode ser que não. Ou é possível que algo interfira com a inteligência?
Krishnamurti: Veja, os Hindus têm a teoria de que a inteligência, ou Brahman, existe eternamente e que é coberta pela ilusão, pela matéria, pela estupidez, por todos os tipos de coisas errôneas criadas pelo pensamento. Eu não sei se você iria tão longe assim.
Bohm: Bem, sim; nós não percebemos, de fato, a existência eterna da inteligência.
Krishnamurti: Eles dizem deixe tudo isso de lado, aquela coisa existe. Então, seu pressuposto é de que ela tenha existido eternamente.
Bohm: Há uma dificuldade nisso, na palavra “eternamente”.
Krishnamurti: Sim.
Bohm: Porque “eternamente” implica tempo.
Krishnamurti: Correto.
Bohm: E esse é exatamente o problema. Tempo é pensamento – eu gostaria de colocar assim: que o pensamento é da ordem do tempo – ou talvez seja o inverso – que o tempo é da ordem do pensamento. Em outras palavras, o pensamento inventou o tempo, e na verdade o pensamento é tempo. Da forma que eu vejo, o pensamento pode varrer todo o tempo em um momento; mas então o pensamento está sempre mudando sem notar que está mudando fisicamente – por razões físicas, é isso.
Krishnamurti: Sim.
Bohm: Não razões racionais.
Krishnamurti: Não.
Bohm: As razões não têm a ver com alguma coisa total, mas sim com algum movimento físico do cérebro; portanto…
Krishnamurti: …elas dependem do ambiente e de todo tipo de coisas.
Bohm: Então como o pensamento muda com o tempo, seu significado não é mais consistente, torna-se contraditório, muda de um modo arbitrário.
Krishnamurti: Sim, estou acompanhando.
Bohm: Então você começa a pensar: tudo está mudando, todas as coisas mudam, e você compreende “eu estou no tempo”. Quando o tempo é estendido, se torna vasto, o passado antes de eu existir, mais e mais atrás e também adiante, no futuro, então você começa a dizer que o tempo é a essência de tudo, que o tempo domina tudo. No início, a criança pode pensar “eu sou eterna”; então, começa a entender que faz parte do tempo. A visão geral com que nos identificamos é de que o tempo é a essência da existência. Eu acho que este não é apenas o senso comum, mas a visão científica também. É muito difícil abandonar tal visão porque é um condicionamento intenso. É mais forte, inclusive, do que o condicionamento do observador e da coisa observada.
Krishnamurti: Sim, com efeito. Estamos dizendo que o pensamento é do tempo, que o pensamento é mensurável, que pode mudar, se modificar, se expandir? E a inteligência é de uma qualidade inteiramente diferente?
Bohm: Sim, de ordem diferente, de qualidade diferente. E eu tenho uma impressão interessante desse pensamento com relação ao tempo. Se pensarmos no passado e no futuro, pensamos que o passado está se tornando o futuro; mas pode-se perceber que tal não pode ser, que isso é apenas pensamento. Ainda se tem a impressão de que passado e futuro estão presentes juntos e há movimento de outra forma; que todo o padrão está se movendo.
Krishnamurti: Todo o padrão está se movendo.
Bohm: Mas eu não posso visualizar como ele se move. Num certo sentido, está se movendo numa direção perpendicular à direção entre passado e futuro. Todo esse movimento – então eu começo a achar que o movimento está em outro tempo.
Krishnamurti: Com efeito.
Bohm: Mas isso traz de volta ao paradoxo.
Krishnamurti: Sim, é isso. Está a inteligência fora do tempo e portanto não relacionada ao pensamento, que é um movimento do tempo?
Bohm: Mas o pensamento tem de estar relacionado a ela.
Krishnamurti: Ele está? Estou perguntando. Eu penso que não.
Bohm: Não? Mas parece haver alguma relação no sentido de que se distingue entre um pensamento inteligente e um pensamento não-inteligente.
Krishnamurti: Sim, mas isso requer inteligência: reconhecer o pensamento não-inteligente.
Bohm: Mas quando a inteligência lê o pensamento, qual é a relação?
Krishnamurti: Vamos devagar…
Bohm: E o pensamento responde à inteligência? O pensamento não se modifica?
Krishnamurti: Sejamos simples. O pensamento é tempo. É movimento no tempo. O pensamento é mensurável e funciona no campo do tempo, todo se movendo, modificando, transformando. Está a inteligência dentro do campo do tempo?
Bohm: Bem, vimos que de certa maneira não pode estar. Mas a coisa não está clara. Primeiro de tudo, o pensamento é mecânico.
Krishnamurti: O pensamento é mecânico, isso está claro.
Bohm: Segundo, de certa maneira, há um movimento que é de uma direção diferente.
Krishnamurti: O pensamento é mecânico; sendo mecânico, pode se mover em direções diferentes e tudo o mais. É a inteligência mecânica? Coloquemos dessa forma.
Bohm: Eu gostaria de perguntar o que significa ser mecânico.
Krishnamurti: Está certo: ser repetitivo, mensurável, comparável.
Bohm: Eu diria também dependente.
Krishnamurti: Dependente, sim.
Bohm: A inteligência – coloquemos claramente – não pode ser dependente de condições para sua validade. No entanto, parece que, de certa maneira, ela não opera se o cérebro não estiver saudável.
Krishnamurti: Obviamente.
Bohm: Nesse aspecto, a inteligência parece depender do cérebro.
Krishnamurti: Ou seria a inteligência a quietude do cérebro?
Bohm: Tudo bem, ela depende da quietude do cérebro.
Krishnamurti: Não da atividade do cérebro.
Bohm: Ainda há alguma relação entre a inteligência e o cérebro. Nós, certa vez, discutimos essa questão, há muitos anos atrás, quando eu mencionei a idéia de que, na física, poder-se-ia utilizar um instrumento de medição de duas formas, a positiva e a negativa. Por exemplo, pode-se medir uma corrente elétrica pela oscilação da agulha no instrumento, ou pode-se usar o mesmo instrumento naquilo que é chamado de ponte Wheatstone, onde a leitura pela qual se procura é uma leitura nula; uma leitura nula indica harmonia, equilíbrio entre os dois lados do sistema como um todo. Então, caso se esteja utilizando o instrumento negativamente, então seu não-movimento é o sinal de que está funcionando adequadamente. Poderíamos dizer que o cérebro pode ter usado o pensamento positivamente para fazer uma imagem do mundo…
Krishnamurti: … o que é uma função do pensamento – uma das funções.
Bohm: A outra função do pensamento é negativa, que é, através de seu movimento, indicar desarmonia.
Krishnamurti: Sim, desarmonia. Prossigamos daqui. É a inteligência dependente do cérebro – chegamos a esse ponto? Ou quando usamos a palavra “dependente” o que queremos dizer?
Bohm: Ela tem muitos significados possíveis. Pode ser simples dependência mecânica. Mas há um outro tipo: que um não pode existir sem o outro. Se eu digo “Eu dependo de comida para existir”, isso não significa que tudo que penso é determinado pelo que eu como.
Krishnamurti: Sim, de fato.
Bohm: Então eu proponho que a inteligência depende, para sua existência, desse cérebro, que pode indicar desarmonia, mas o cérebro não tem nada a ver com o conteúdo da inteligência.
Krishnamurti: Então, se o cérebro não estiver harmonioso, a inteligência pode funcionar?
Bohm: Essa é a questão.
Krishnamurti: Isso é o que estamos dizendo. Ela não pode funcionar se o cérebro estiver ferido.
Bohm: Se a inteligência não funciona, há inteligência? Portanto, parece que a inteligência requer o cérebro para que exista.
Krishnamurti: Mas o cérebro é apenas um instrumento.
Bohm: Que indica harmonia ou desarmonia.
Krishnamurti: Mas não é o criador da inteligência.
Bohm: Não.
Krishnamurti: Entremos nisso devagar.
Bohm: O cérebro não cria a inteligência, mas é um instrumento que auxilia a inteligência a funcionar. É isso.
Krishnamurti: É isso. Agora se o cérebro estiver funcionando dentro do campo do tempo, para cima e para baixo, negativamente, positivamente, pode a inteligência operar nesse movimento de tempo? Ou deve esse instrumento estar quieto para que a inteligência possa operar?
Bohm: Sim. Eu colocaria isso de forma levemente diferente. A quietude do instrumento é a operação a inteligência.
Krishnamurti: Sim, isso está correto. Os dois não estão separados.
Bohm: Eles são um e o mesmo. A não-quietude do instrumento é a falha da inteligência.
Krishnamurti: Está correto.
Bohm: Mas acho que seria útil retornar a questões que tendem a ser levantadas no todo do pensamento científico e filosófico. Nós faríamos a pergunta: há algum sentido no qual a inteligência exista independentemente da matéria? Você vê que algumas pessoas têm achado que pensamento e matéria têm alguma espécie de existência separada. Essa é uma questão que vem à tona. Pode não ser relevante, mas acho que deveria ser considerada para auxiliar a tornar a mente quieta. Considerar questões que não podem ser claramente respondidas é uma das coisas que perturba a mente.
Krishnamurti: Mas veja, senhor, quando você diz “auxiliar a mente a se tornar quieta”, o pensamento vai ajudar no despertar da inteligência? É este o significado da frase, não? Pensamento e matéria e o exercício do pensamento e o movimento do pensamento, ou o pensamento dizendo a si mesmo “Ficarei quieto com o fim de auxiliar o despertar da inteligência”. Qualquer movimento do pensamento é tempo, qualquer movimento, porque o pensamento é mensurável, está funcionando positivamente ou negativamente, harmoniosamente ou desarmoniosamente, neste campo. E compreendendo isso, o pensamento pode dizer inconscientemente, de modo desapercebido, que “Ficarei quieto para conseguir isto ou aquilo”, então isto está ainda dentro do campo do tempo.
Bohm: Sim. Ele está ainda projetando.
Krishnamurti: O pensamento está projetando a coisa para capturá-la. Então como a inteligência tem lugar – não como – quando ela desperta?
Bohm: Uma vez mais a questão está no tempo.
Krishnamurti: É por isso que não quero usar as palavras “quando”, “como”.
Bohm: Você deveria talvez dizer que a condição para o despertar da inteligência é a inoperância do pensamento.
Krishnamurti: Sim.
Bohm: Mas, como o despertar da inteligência, essa inoperância não é apenas a condição. Não se pode nem mesmo perguntar se há condições para a inteligência despertar. Até mesmo falar sobre uma condição é uma forma de pensamento.
Krishnamurti: Sim. Concordemos que qualquer movimento do pensamento, em qualquer direção, vertical, horizontal, em ação ou inação, está ainda dentro do tempo – qualquer movimento do pensamento.
Bohm: Sim.
Krishnamurti: Então qual é a relação do movimento com essa inteligência que não é um movimento, que não é do tempo, que não é o produto do pensamento? Onde os dois podem se encontrar?
Bohm: Eles não se encontram. Mas ainda assim há uma relação.
Krishnamurti: Isso é o que estamos tentando descobrir. Há qualquer relação, em primeiro lugar? Pensa-se que haja uma relação, espera-se que haja uma relação, projeta-se uma relação. Há uma relação, de todo?
Bohm: Isso depende do que você quer dizer com relação.
Krishnamurti: Relação: estar em contato com, reconhecimento, um sentimento de estar tocando.
Bohm: Bem, a palavra relação deve significar algo mais.
Krishnamurti: Que outro significado tem?
Bohm: Por exemplo, há o paralelo, não há? A harmonia entre duas coisas. Isso é, duas coisas podem estar em relação sem contato, mas por estarem simplesmente em harmonia.
Krishnamurti: Harmonia significa um movimento das duas numa mesma direção?
Bohm: Deve significar também, em certo sentido, continuar na mesma ordem.
Krishnamurti: Na mesma ordem: mesma direção, mesma profundidade, mesma intensidade – tudo isso é harmonia. Mas pode o pensamento sequer ser harmônico? – pensamento como movimento, não pensamento estático.
Bohm: Entendo. Há aquele pensamento que se abstrai como estático, na geometria, digamos, que pode ter alguma harmonia; mas o pensamento, como realmente se move, é sempre contraditório.
Krishnamurti: Portanto ele não tem harmonia em si mesmo. Mas a inteligência tem harmonia em si mesma.
Bohm: Acho que vejo a fonte da confusão. Nós temos os produtos estáticos do pensamento que parecem ter uma certa harmonia relativa. Mas essa harmonia é realmente o resultado da inteligência, ao menos me parece. Na matemática, podemos obter uma certa harmonia relativa do produto do pensamento, ainda que o real movimento de pensamento do matemático não esteja necessariamente em harmonia, geralmente não estará em harmonia. Agora, essa harmonia que aparece na matemática é o resultado da inteligência, não?
Krishnamurti: Prossiga, senhor.
Bohm: Não é harmonia perfeita porque tem sido provado que toda forma de matemática tem algum limite; por isso chamo isso de uma harmonia apenas relativa.
Krishnamurti: Sim. Agora, no movimento do pensamento há harmonia? Se há, então ele tem relação com a inteligência. Se não há harmonia, mas contradições e todo o resto, então o pensamento não tem relação com a inteligência.
Bohm: Então você diria que poderíamos funcionar inteiramente sem pensamento?
Krishnamurti: Eu colocaria isso de outra forma. A inteligência usa o pensamento.
Bohm: Tudo bem. Mas como ela pode utilizar algo que está desarmonioso?
Krishnamurti: Expressão, comunicação, usando o pensamento que é contraditório, que não é harmonioso, para criar coisas no mundo.
Bohm: Mas ainda assim deve haver harmonia em algum outro aspecto, naquilo que é feito com o pensamento, no que acabamos de descrever.
Krishnamurti: Vamos vagarosamente. Podemos primeiro pôr em palavras, negativamente ou positivamente, o que é inteligência, o que não é inteligência? Ou isso é impossível porque as palavras são pensamento, tempo, medida e etc.?
Bohm: Não podemos pôr em palavras. Estamos tentando apontar. Podemos dizer que o pensamento pode funcionar como um ponteiro para a inteligência, e então sua contradição não importa.
Krishnamurti: Isso está correto. Isso está correto.
Bohm: Porque não estamos utilizando o pensamento por seu conteúdo, ou seu significado, mas, em vez disso, como um ponteiro que aponta para além do domínio do tempo.
Krishnamurti: Então o pensamento é um ponteiro. O conteúdo é a inteligência.
Bohm: O conteúdo para o qual o pensamento aponta.
Krishnamurti: Sim. Podemos dispor a coisa de modo inteiramente diferente? Podemos dizer, o pensamento é estéril?
Bohm: Sim. Quando se move por si mesmo, sim.
Krishnamurti: Que é mecânico e todo o resto. O pensamento é um ponteiro, mas sem inteligência o ponteiro não tem valor.
Bohm: Poderíamos dizer que a inteligência lê o ponteiro? Se não tiver ninguém para lê-lo, então o ponteiro não aponta.
Krishnamurti: De fato. Então a inteligência é necessária. Sem ela, o pensamento não tem significado, de todo.
Bohm: Mas agora poderíamos dizer que se o pensamento não é inteligente ele aponta de um modo muito confuso?
Krishnamurti: Sim, de um modo irrelevante.
Bohm: Irrelevante, sem significado e etc. Então com inteligência ele começa a apontar de uma outro modo. Mas então de alguma forma pensamento e inteligência parecem se fundir numa função comum.
Krishnamurti: Sim. Então podemos perguntar: o que é ação relacionada à inteligência? Certo?
Bohm: Sim.
Krishnamurti: O que é ação em relação com a inteligência, e, na execução dessa ação, o pensamento é necessário?
Bohm: Sim; bem, o pensamento é necessário e esse pensamento aponta obviamente em direção à matéria. Mas parece apontar nos dois sentidos – para trás, em direção à inteligência, também. Uma das questões que sempre vêm à tona é: deveríamos dizer que inteligência e matéria são meramente uma distinção dentro da mesma coisa, ou elas são diferentes? Estão realmente separadas?
Krishnamurti: Eu acho que estão separadas, são distintas.
Bohm: São distintas, mas estão realmente separadas?
Krishnamurti: O que você quer dizer por “separadas”? Não relacionadas, não conectadas, sem uma fonte comum?
Bohm: Sim. Elas têm uma fonte comum?
Krishnamurti: Esse é o ponto. Pensamento, matéria e inteligência, têm eles uma fonte comum? (longa pausa) Acho que têm.
Bohm: De outra maneira, não poderia haver harmonia, obviamente.
Krishnamurti: Mas veja, o pensamento tem dominado o mundo. Você entende? – dominado.
Bohm: Domina o mundo.
Krishnamurti: O pensamento, o intelecto, domina o mundo. E portanto a inteligência tem um lugar muito pequeno aqui. Quando uma coisa domina, a outra tem de ser subserviente.
Bohm: Pergunta-se, não sei se é relevante, como isso veio a acontecer.
Krishnamurti: Isso é extremamente simples.
Bohm: O que você diria?
Krishnamurti: O pensamento tem que ter segurança; está procurando por segurança em todo o seu movimento.
Bohm: Sim.
Krishnamurti: Mas a inteligência não está buscando segurança. Ela não tem segurança. A idéia de segurança não existe na inteligência. Ela por si mesma é segura, e não “busca segurança”.
Bohm: Sim, mas como aconteceu de a inteligência permitir que fosse dominada?
Krishnamurti: Ó, isso está muito claro. Prazer, conforto, segurança física, primeiro de tudo segurança física: segurança no relacionamento, segurança na ação, segurança…
Bohm: Mas isso é a ilusão da segurança.
Krishnamurti: Ilusão de segurança, com certeza.
Bohm: Você diria que o pensamento escapou do controle e deixou de permitir que a inteligência o mantivesse em um estado ordenado, ou pelo menos que deixou de estar em harmonia com ela, e começou a mover-se por conta própria.
Krishnamurti: Por conta própria.
Bohm: Buscando segurança e prazer e etc.
Krishnamurti: Como estávamos dizendo outro dia em nossa conversa, todo o mundo ocidental é baseado na medida; e o mundo oriental tentou ir além dela. Mas eles utilizaram o pensamento para isso.
Bohm: Tentaram, de qualquer forma.
Krishnamurti: Tentaram ir além da medida pelo exercício do pensamento; portanto, foram capturados no pensamento. Agora, segurança, segurança física, é necessária e portanto a existência física, os prazeres físicos, o bem-estar físico se tornou tremendamente importante.
Bohm: Sim, estava pensando um pouco sobre isso. Se você retroceder até o animal, então há a resposta instintiva em direção ao prazer e à segurança: isso estaria correto. Mas agora, quando o pensamento entra, pode ofuscar o instinto e produzir toda sorte de glamour, mais prazer, mais segurança. E os instintos não são inteligentes o suficiente para lidar com a complexidade do pensamento, portanto o pensamento cai no erro, porque excitou os instintos e eles demandam mais.
Krishnamurti: Então o pensamento realmente criou um mundo de ilusão, miasma, confusão, e pôs a inteligência de lado.
Bohm: Bem, como dissemos antes, isso tornou o cérebro muito caótico e barulhento e a inteligência é o silêncio do cérebro; portanto, o cérebro barulhento não é inteligente.
Krishnamurti: O cérebro barulhento não é inteligente, é claro!
Bohm: Bem, isso explica mais ou menos a origem da coisa.
Krishnamurti: Nós estamos tentando descobrir qual a relação, na ação, entre o pensamento e a inteligência. Tudo é ação ou inação. E qual a relação disso com a inteligência? O pensamento realmente produz ação caótica, ação fragmentária.
Bohm: Quando não é comandado pela inteligência.
Krishnamurti: E não é, no modo como nós todos vivemos.
Bohm: Isto se deve ao que acabamos de dizer.
Krishnamurti: Isto é atividade fragmentada; não é uma atividade de uma totalidade. A ação da totalidade é inteligência.
Bohm: A inteligência também tem de entender a atividade do pensamento.
Krishnamurti: Sim, nós dissemos isso.
Bohm: Agora você diria que, quando a inteligência compreende a atividade do pensamento, o pensamento é diferente em sua operação?
Krishnamurti: Sim, obviamente. Isso é, se o pensamento criou o nacionalismo como meio de segurança e então vê a falácia disso, o ver a falácia disso é inteligência. O pensamento então cria um tipo de mundo diferente, no qual o nacionalismo não existe.
Bohm: Sim.
Krishnamurti: E nem divisão, guerra, conflito e todo o resto.
Bohm: Isso está bem claro. A inteligência vê a falsidade do que está acontecendo. Quando o pensamento está livre desta falsidade, é diferente. Então ele começa a ser um paralelo para a inteligência.
Krishnamurti: Isso está correto.
Bohm: Isso é, ele começa a levar as implicações da inteligência.
Krishnamurti: Portanto o pensamento tem um lugar.
Bohm: Isso é muito interessante porque o pensamento nunca é de fato controlado ou dominado pela inteligência, mas sempre se move por conta própria. Mas à luz da inteligência, quando a falsidade é vista, então o pensamento se move paralelamente ou em harmonia com a inteligência.
Krishnamurti: Isso está correto.
Bohm: Mas nunca há nada que force o pensamento a fazer o que quer que seja. Isso sugeriria que a inteligência e o pensamento têm essa origem ou substância comum, e que são duas formas de chamar a atenção para um todo maior.
Krishnamurti: Sim. Pode-se ver como politicamente, religiosamente, psicologicamente, o pensamento tem criado um mundo de tremenda contradição, fragmentação, e a inteligência que é o produto dessa confusão então tenta trazer ordem à confusão. Não é aquela inteligência que vê a falsidade disso tudo. Não sei se estou me fazendo entender. Você vê, pode-se ser terrivelmente inteligente, ainda que se seja caótico.
Bohm: Bem, em alguns aspectos.
Krishnamurti: Isso é o que está acontecendo no mundo.
Bohm: Mas eu suponho que seja difícil de entender isso nesse momento. Poder-se-ia dizer que numa esfera limitada parece que a inteligência é capaz de operar, mas, fora dela, não.
Krishnamurti: Nós estamos, afinal, preocupados com o viver, não com teorias. Está-se preocupado com uma vida em que a inteligência opere. Inteligência que não pertence ao tempo, que não pertence à medida, que não é o produto ou o movimento do pensamento, ou da ordem do pensamento. Agora um ser humano quer viver um tipo diferente de vida. Ele está dominado pelo pensamento, seu pensamento está sempre funcionando na medição, na comparação, no conflito. Ele pergunta “Como posso tornar-me livre de tudo isso com o fim de ser inteligente?”, “Como pode o ‘eu’, como posso ‘eu’ ser o instrumento dessa inteligência?”.
Bohm: Obviamente, isso não pode ser.
Krishnamurti: Exatamente!
Bohm: Porque esse pensamento no tempo é a essência da não-inteligência.
Krishnamurti: Mas está-se pensando nesses termos todo o tempo.
Bohm: Sim. Isso é o pensamento projetando algum tipo de fantasia do que seja inteligência, e tentando alcançar essa fantasia.
Krishnamurti: Portanto eu diria que o pensamento deve estar completamente quieto para o despertar da inteligência. Não pode haver um movimento de pensamento e ocorrer o despertar da inteligência.
Bohm: Isso está claro em um nível. Consideramos o pensamento como sendo realmente mecânico e isso pode ser percebido num nível – mas o mecanismo ainda continua.
Krishnamurti: Continua, sim…
Bohm: … através dos instintos, prazer, medo e etc. A inteligência tem de vir para segurar essa questão dos prazeres, medos, desejos, que fazem o pensamento continuar.
Krishnamurti: Sim.
Bohm: E você vê, há sempre uma armadilha: isso é apenas nosso conceito ou imagem da questão, que é parcial.
Krishnamurti: Então, como ser humano, eu ficaria preocupado apenas com essa questão central. Eu sei o quão confusa, contraditória, desarmoniosa a vida está. É possível modificar isso de modo que a inteligência possa funcionar em minha vida, de modo que eu possa viver sem desarmonia, de modo que o ponteiro, a direção seja guiada pela inteligência? Esse talvez seja o porquê de as pessoas religiosas, em vez de utilizarem a palavra inteligência, terem utilizado a palavra Deus.
Bohm: Qual a vantagem?
Krishnamurti: Não sei qual é a vantagem.
Bohm: Mas por que utilizar tal palavra?
Krishnamurti: Ela veio do medo primitivo, medo da natureza, e, gradualmente, a partir disso, cresceu a idéia de que há um pai superior.
Bohm: Mas isso ainda é o pensamento funcionando por si mesmo, sem inteligência.
Krishnamurti: É claro. Estou apenas relembrando. Dizem confie em Deus, tenha fé em Deus, e então Deus operará através de você.
Bohm: Deus é talvez uma metáfora para inteligência – mas as pessoas geralmente não tomam isso como uma metáfora.
Krishnamurti: Claro que não, é uma imagem terrificante.
Bohm: Sim. Poder-se-ia dizer que, se Deus significa aquilo que é imensurável, que está além do pensamento…
Krishnamurti: …e inominável, imensurável, portanto não tem uma imagem.
Bohm: Então vai operar dentro do mensurável.
Krishnamurti: Sim. O que estou tentando transmitir é que o desejo por essa inteligência, através do tempo, tem criado a imagem de Deus. E através da imagem de Deus, Jesus, Krishna, ou quem quer que seja, tendo fé nisso – o que ainda é o movimento do pensamento – espera-se que haja harmonia na própria vida.
Bohm: E essa espécie de imagem, porque é tão total, produz um desejo, uma urgência sobrepujante; isto é, que sobrepuja a racionalidade … tudo.
Krishnamurti: Você ouviu, outro dia, o que os arcebispos e bispos estavam dizendo, que apenas Jesus importa, nada mais.
Bohm: Mas esse é o mesmo movimento pelo qual o prazer sobrepuja a racionalidade.
Krishnamurti: O medo e o prazer.
Bohm: Eles sobrepujam; nenhuma proporção pode ser estabelecida.
Krishnamurti: Sim, o que estou tentando dizer é: você vê, o mundo inteiro está condicionado dessa forma.
Bohm: Sim, mas a questão é aquilo a que você aludiu: o que é esse mundo que está condicionado dessa forma? Se tomarmos esse mundo como existente independentemente do pensamento, então caímos na mesma armadilha de novo.
Krishnamurti: É claro, é claro.
Bohm: Isso é, o mundo condicional inteiro é o resultado desse modo de pensar, é tanto a causa quanto o efeito desse modo de pensar.
Krishnamurti: Correto.
Bohm: E essa forma de pensar é desarmonia e caos e não-inteligência e etc.
Krishnamurti: Eu estava ouvindo a Conferência do Partido Trabalhista em Blackpool – quão espertos, alguns deles muito sérios, bilíngües e tudo o mais, pensando em termos de Partido Trabalhista e Partido Conservador. Eles não dizem “Juntemo-nos e vejamos o que é o melhor para os seres humanos.”
Bohm: Eles não são capazes.
Krishnamurti: Isso mesmo, mas eles estão exercitando sua inteligência!
Bohm: Bem, naquele padrão limitado. Isso é o que tem sido sempre nosso problema; as pessoas têm desenvolvido tecnologia e outras coisas em termos de alguma inteligência limitada, que está servindo a propósitos altamente não-inteligentes.
Krishnamurti: Sim, é isso.
Bohm: Por milhares de anos isso tem prosseguido. Então, é claro, as reações surgem: os problemas são muito grandes, muito vastos.
Krishnamurti: Mas isso é realmente muito simples, extraordinariamente simples, esse sentido de harmonia. Porque é simples, pode funcionar no mais complexo campo.
Krishnamurti: Regressemos. Dissemos que a fonte do pensamento e da inteligência é comum…
Bohm: Sim, chegamos até aí.
Krishnamurti: O que é essa fonte? Ela é geralmente atribuída a algum conceito filosófico, ou dizem que essa fonte é Deus – eu estou apenas usando essa palavra por ora – ou Brahman. Essa fonte é comum, é o movimento central que divide a si mesmo em matéria e inteligência. Mas isto é apenas uma asserção verbal, é apenas uma idéia, que ainda é pensamento. Não se pode encontrar isso pelo pensamento.
Bohm: Isso levanta a questão: se você encontra isso, então o que é “você”?
Krishnamurti: “Você” não existe. “Você” não pode existir quando você está perguntando qual é a fonte. “Você” é tempo, movimento, condicionamento ambiental – você é tudo isso.
Bohm: Nessa questão, o todo dessa divisão é posto de lado.
Krishnamurti: Absolutamente. Esse é o ponto, não?
Bohm: Não há tempo…
Krishnamurti: E ainda assim continuamos dizendo “Eu não exercitarei o pensamento”. Quando o “eu” entra, isso significa divisão: então, entendendo o todo disso – sobre o que estivemos conversando – eu elimino o “eu”, inteiramente.
Bohm: Mas isso soa como uma contradição.
Krishnamurti: Eu sei. Eu não posso eliminá-lo. Isso acontece. Então o que é a fonte? Ela pode sequer ser nomeada? Por exemplo, o sentimento religioso dos judeus é que isso é inominável: você não nomeia, não pode falar a respeito, não pode tocar. Pode-se apenas olhar. E os hindus e outros dizem a mesma coisa de um modo diferente. Os cristãos iludiram a si mesmos pela palavra Jesus, essa imagem, eles nunca foram à fonte disso.
Bohm: Essa é uma questão complexa; pode ser que eles estivessem tentando sintetizar muitas filosofias, hebraica, grega e oriental.
Krishnamurti: Agora eu quero chegar a isto: o que é a fonte? Pode o pensamento encontrá-la? E ainda assim o pensamento nasceu dessa fonte; e a inteligência também. São como dois fluxos se movendo em direções diferentes.
Bohm: Você diria que a matéria também nasce dessa fonte, de modo mais geral?
Krishnamurti: Claro.
Bohm: Eu quero dizer todo o universo. Mas então a fonte está além do universo.
Krishnamurti: É claro. Podemos colocar desse modo? O pensamento é energia, assim como a inteligência.
Bohm: Assim como a matéria.
Krishnamurti: Pensamento, matéria, o mecânico, é energia. Inteligência também é energia. O pensamento está confuso, poluído, dividindo a si mesmo, fragmentando a si mesmo.
Bohm: Sim, ele é múltiplo.
Krishnamurti: E a inteligência não. Não está poluída. Não pode dividir a si mesma como “minha inteligência” e “sua inteligência”. Ela é inteligência, não é divisível. Agora ela brotou de uma fonte de energia que dividiu a si mesma.
Bohm: Por que ela se dividiu?
Krishnamurti: Por razões físicas, por conforto…
Bohm: Para manter a existência física. Então uma parte da inteligência foi modificada de um modo que pudesse auxiliar a manter a existência física.
Krishnamurti: Sim.
Bohm: Isso se desenvolveu de uma certa maneira.
Krishnamurti: E prosseguiu dessa maneira. Os dois são energia. Há apenas uma energia.
Bohm: Sim, eles são diferentes formas de energia. Há muitas analogias para isso, embora numa escala muito mais limitada. Na física, poder-se-ia dizer que a luz é ordinariamente um movimento de onda muito complexo, mas, no laser, pode-se fazer com que se mova toda junta, num modo muito simples e harmônico.
Krishnamurti: Sim. Eu estive lendo sobre o laser. Que coisas monstruosas irão fazer com ele.
Bohm: Sim, utilizando-o destrutivamente. O pensamento pode obter coisas boas mas então elas sempre são utilizadas de um modo mais bruto que é destrutivo.
Krishnamurti: Então há apenas energia, que é a fonte.
Bohm: Você diria que a energia é um tipo de movimento?
Krishnamurti: Não, ela é energia. No momento em que se torna movimento, cai nesse campo do pensamento.
Bohm: Nós temos de tornar mais clara essa noção de energia. Eu pesquisei essa palavra também. Você vê, ela está baseada na noção de trabalho; energia significa “trabalhar internamente”.
Krishnamurti: Trabalhar internamente, sim.
Bohm: Mas agora você diz que há uma energia que funciona, mas sem movimento.
Krishnamurti: Sim. Eu estava pensando sobre isso ontem – não pensando – eu compreendi que a fonte está lá, incontaminada, não-movimento, intocada pelo pensamento, está lá. A partir dela, esses dois nasceram. Por que nasceram, de todo?
Bohm: Um era necessário à sobrevivência.
Krishnamurti: Isso é tudo. Na sobrevivência, a fonte – em sua totalidade, em sua completude – foi negada, ou posta de lado. Aquilo a que estou tentando chegar é isso, senhor. Eu quero descobrir, como um ser humano vivendo nesse mundo com todo caos e sofrimento, pode a mente humana tocar essa fonte na qual as duas divisões não existem? – e, por haver tocado essa fonte, que não tem divisões, pode essa mente operar sem o senso de divisão? Não sei se estou conseguindo transmitir isso.
Bohm: Mas como é possível à mente humana não tocar a fonte? Por que ela não toca a fonte?
Krishnamurti: Porque somos consumidos pelo pensamento, pela esperteza do pensamento, pelo movimento do pensamento. Todos os seus deuses, suas meditações – tudo é pensamento.
Bohm: Sim. Acho que isso nos traz à questão de vida e morte. Isso se relaciona à sobrevivência; porque essa é uma das coisas que entram no caminho.
Krishnamurti: O pensamento e seu campo de segurança, seu desejo por segurança, criou a morte como algo separado dele mesmo.
Bohm: Sim, esse pode ser o ponto-chave.
Krishnamurti: E é.
Bohm: Pode-se olhar para isso dessa forma. O pensamento construiu a si mesmo como um instrumento para a sobrevivência. Agora no entanto…
Krishnamurti: …ele criou a imortalidade em Jesus, ou nisso ou naquilo.
Bohm: O pensamento não pode possivelmente contemplar sua própria morte. Então, se tenta fazê-lo, sempre projeta algo mais, algum outro ponto de vista mais amplo a partir do qual parece estar observando a morte. Se qualquer um tenta imaginar que está morto, então está ainda imaginando que está vivo e olhando a si mesmo como morto. Pode-se sempre complicar isso em toda espécie de noção religiosa; mas parece ser inerente ao pensamento a impossibilidade de considerar a morte apropriadamente.
Krishnamurti: Ele não pode. Isto significa terminar a si mesmo.
Bohm: Isso é muito interessante. Suponha que consideramos a morte do corpo, que vemos de fora; o organismo morre, perde sua energia e portanto desfalece.
Krishnamurti: É que o corpo é o instrumento da energia.
Bohm: Então digamos que a energia cesse de imbuir o corpo e portanto o corpo não possua mais qualquer inteireza. Poder-se-ia dizer o mesmo com o pensamento; a energia de determinadas maneiras segue para o pensamento, assim como para o corpo – é assim?
Krishnamurti: Correto.
Bohm: Você e outras pessoas têm freqüentemente usado a frase: “A mente morre para todo pensamento.”. Essa forma de colocação induz à confusão num primeiro momento, porque se acharia que o pensamento é que deveria morrer.
Krishnamurti: De fato.
Bohm: Mas agora você está dizendo que é a mente que morre, ou a energia que morre para o pensamento. O mais próximo que posso chegar do significado disso é que quando o pensamento está trabalhando, está investido com uma certa energia pela mente ou pela inteligência; e quando o pensamento não é mais relevante, então a energia se vai e o pensamento é como um organismo morto.
Krishnamurti: Está correto.
Bohm: Agora é muito difícil para a mente aceitar isso. A comparação entre pensamento e organismo parece tão pobre, porque o pensamento não é substancial e o organismo é. Então a morte do organismo aparenta ser algo muito mais significante do que a morte do pensamento. Agora esse é um ponto que não está claro. Você diria que na morte do pensamento nós temos a essência da morte do organismo?
Krishnamurti: Obviamente.
Bohm: Embora essa morte esteja numa escala menor, como de fato está, é da mesma natureza?
Krishnamurti: Como dissemos, há energia nos dois, e o pensamento em seu movimento é dessa energia, e o pensamento não pode ver a si mesmo morrer.
Bohm: Ele não tem meio de imaginar, projetar, ou conceber sua própria morte.
Krishnamurti: Portanto, ele foge da morte.
Bohm: Bem, ele provê a si mesmo a ilusão.
Krishnamurti: Ilusão, é claro. E ele criou a ilusão da imortalidade ou um estado além da morte, uma projeção de seu próprio desejo por continuidade.
Bohm: Bem, essa é uma coisa, que o pensamento pode ter começado por desejar a continuidade do organismo.
Krishnamurti: Sim, está correto, e então foi além disso.
Bohm: Foi além disso, para desejar sua própria continuidade. Esse foi o engano, foi aí que ele errou. Encarou a si mesmo como uma extensão, não meramente uma extensão, mas a essência do organismo. Primeiro o pensamento está funcionando meramente no organismo e então começa e ver a si mesmo como a essência do organismo.
Krishnamurti: Correto.
Bohm: Então o pensamento começa a desejar sua própria imortalidade.
Krishnamurti: E o pensamento sabe, está muito bem consciente de que não é imortal.
Bohm: Ele sabe disso apenas de fora, no entanto. Quero dizer, ele sabe disso como um fato externo.
Krishnamurti: Portanto cria a imortalidade em figuras, imagens.
Krishnamurti: Eu ouço tudo isso como alguém que está de fora e digo a mim mesmo “Isto é perfeitamente verdadeiro, tão claro, lógico, são; nós vemos isso bem claramente, tanto psicológica quanto fisicamente.” Agora minha questão, observando tudo isso, é: pode a mente manter a pureza da fonte original? A imaculada clareza original daquela energia que não é tocada pela corrupção do pensamento? Não sei se estou expondo claramente.
Bohm: A questão está clara.
Krishnamurti: Pode a mente fazer isso? Pode a mente sequer descobrir isso?
Bohm: O que é a mente?
Krishnamurti: A mente, como nós dizemos agora, ou organismo, o pensamento, o cérebro com todas as suas memórias, experiências e tudo isso, que é tudo do tempo. E a mente diz “Posso chegar a isso?”. Ela não pode. Então eu digo a mim mesmo “Como ela não pode, ficarei quieto.”. Você vê os truques que ela tem pregado.
Bohm: Sim.
Krishnamurti: Eu aprenderei como estar quieto; aprenderei como meditar com o objetivo de ficar quieto. Eu vejo a importância de se ter uma mente que seja livre do tempo, livre do mecanismo do pensamento, eu a controlarei, a subjugarei, expulsarei o pensamento. Mas isto ainda é operação do pensamento. Isso está muito claro. Então o que ela deve fazer? Porque um ser humano vive nessa desarmonia, ele deve questionar isso. E isso é o que estamos fazendo. Como começamos a questionar isso, ou no questionar, chegamos a essa fonte. É ela uma percepção, um insight, e esse insight não tem nada, coisa alguma a ver com o pensamento? É o insight o resultado do pensamento? A conclusão de um insight é pensamento, mas o insight propriamente não é pensamento. Assim, eu obtive uma chave para isso. Então o que é insight? Posso convidá-lo, cultivá-lo?
Bohm: Você não pode fazer nenhuma dessas coisas. Mas há um tipo de energia que é necessário.
Krishnamurti: Exatamente. Eu não posso fazer nenhuma daquelas coisas. Quando eu cultivo o insight, isso é desejo. Quando digo que vou fazer isto ou aquilo, é o mesmo. Então o insight não é o produto do pensamento. Não está na ordem do pensamento. Agora, como se chega até esse insight? (Pausa) Nós já chegamos a ele por havermos negado tudo aquilo.
Bohm: Sim, ele está lá. Você não pode nunca responder àquela questão de como você chega até qualquer coisa.
Krishnamurti: Não. Eu acho que isto está muito claro, senhor. Você chega até o insight quando você vê toda a coisa. Então o insight é a percepção do todo. Um fragmento não pode ver isso, mas o “eu” vê os fragmentos, e o “eu” vendo os fragmentos vê o todo, e a qualidade de uma mente que vê o todo não é tocada pelo pensamento; portanto há percepção, há insight.
Bohm: Talvez devamos ir mais devagar a esse respeito. Nós vemos todos os fragmentos: poderíamos dizer que a energia, a atividade real que vê esses fragmentos é inteira?
Krishnamurti: Sim, sim.
Bohm: Nós nem sequer fazemos esforço para ver o todo porque…
Krishnamurti: …nós somos educados – e todo o resto.
Bohm: Mas eu quero dizer, nós de qualquer forma não veríamos o todo como alguma coisa. Em vez disso, a totalidade é a liberdade de ver todos os fragmentos.
Krishnamurti: Isso está correto. Liberdade para ver. A liberdade não existe quando há fragmentos.
Bohm: Isso cria um paradoxo.
Krishnamurti: É claro.
Bohm: Mas o todo não começa a partir dos fragmentos. Uma vez que o todo opera, não há fragmentos. Então o paradoxo surge da suposição de que os fragmentos são reais, de que eles existem independentemente do pensamento. Então você diria, eu suponho, que os fragmentos existem comigo em meus pensamentos, e então eu devo de alguma forma fazer alguma coisa com relação a eles – o que seria um paradoxo. O todo começa pelo insight de que esses fragmentos são, de certa maneira, nada. É assim que isso parece ser, para mim. Eles não são substanciais. São muito insubstanciais.
Krishnamurti: Insubstanciais, sim.
Bohm: E portanto eles não impedem a totalidade.
Krishnamurti: Com efeito.
Bohm: Você vê, uma das coisas que freqüentemente causa confusão é isso, quando você põe os fragmentos em termos de pensamento, parece que você está diante dos fragmentos, que são reais, realidade substancial. Então você tem de vê-los, e no entanto, você diz, enquanto os fragmentos existam, não há totalidade, de modo que você não pode vê-los. Mas tudo isso retorna para a coisa, a fonte.
Krishnamurti: Eu estou certo, senhor, pessoas realmente sérias têm feito essa pergunta. Eles a têm feito e têm tentado encontrar uma resposta através do pensamento.
Bohm: Sim, bem, isso parece natural.
Krishnamurti: E eles nunca perceberam que foram pegos no pensamento.
Bohm: Esse é sempre o problema. Todo mundo se depara com esse problema: parece que se está olhando para qualquer coisa, para seus próprios problemas, dizendo “Esses são meus problemas, eu estou olhando.”. Mas esse olhar é apenas pensar, mas é confundido com olhar. Essa é uma das confusões que surgem. Se você diz “não pense, apenas olhe” a pessoa sente que já está olhando.
Krishnamurti: De fato. Então você vê, essa questão surgiu e eles dizem “Tudo bem, então eu devo controlar o pensamento, subjugar o pensamento e devo tornar minha mente quieta de modo que ela se torne inteira, então eu poderei ver as partes, todos os fragmentos, então eu tocarei a fonte.”. Mas isso ainda é a operação do pensamento.
Bohm: Sim, isso significa que a operação do pensamento é inconsciente para a maioria e portanto a pessoa não sabe quando ela está acontecendo. Nós podemos dizer que conscientemente compreendemos que tudo isso tem de ser modificado, tem de ser diferente.
Krishnamurti: Mas isso ainda está ocorrendo inconscientemente. Então você pode falar ao meu inconsciente, sabendo que meu cérebro consciente vai resistir a você? Porque você está me contando algo que é revolucionário, você está me dizendo algo que abala toda a minha casa que eu construí com tanto esmero, e eu não lhe darei ouvidos – você entendeu? Em minhas reações instintivas eu o afasto. Então você compreende isso e diz “Veja, tudo bem, velho amigo, apenas não se preocupe em me dar ouvidos. Eu vou falar ao seu inconsciente. Eu vou falar ao seu inconsciente e fazer com que ele veja que qualquer movimento que faça está ainda dentro do campo do tempo e etc.”. Assim, sua mente consciente nunca está em operação. Quando ela opera, deve inevitavelmente resistir também, ou dizer “Eu vou aceitar”; portanto ela cria um conflito nela mesma. Então, você pode falar ao meu inconsciente?
Bohm: Pode-se sempre perguntar como.
Krishnamurti: Não, não. Você pode dizer a um amigo “Não resista, não pense sobre isso, mas eu vou falar com você.”. “Nós dois estamos nos comunicando um com outro sem que a mente consciente ouça.”
Bohm: Sim.
Krishnamurti: Eu acho que isso é o que realmente ocorre. Quando você estava falando comigo – eu estive percebendo – eu não estava escutando muito suas palavras. Eu estava escutando você. Eu estava aberto a você, não a suas palavras, o que você explicou e etc. Eu disse a mim mesmo, tudo bem, abandone tudo isso, eu estou ouvindo você, não as palavras que você usa, mas o significado, a qualidade interior do seu sentimento que você queria me comunicar.
Bohm: Eu entendo.
Krishnamurti: Isso me modifica, não toda essa verbalização. Então você pode falar comigo sobre minhas idiotices, minha ilusões, minhas tendências peculiares, sem a mente consciente interferindo e dizendo “Por favor, não toque em tudo isso, deixe-me sozinho!”. Tentaram propaganda subliminar em anúncios, de modo que você não estaria prestando verdadeira atenção, seu inconsciente estaria, então você compraria aquela sopa em particular! Não estamos fazendo isso, o que seria mortal. O que estou dizendo é: não me escute com seus ouvidos conscientes, mas escute-me com os ouvidos que ouvem muito mais fundo. Essa é a forma com que eu ouvi você esta manhã, porque eu estou terrivelmente interessado na fonte, como você está. Você entendeu, senhor? Eu estou realmente interessado naquela coisa única. Tudo isso é o explicável, facilmente entendido – mas chegar junto àquela coisa, senti-la próxima! Você entendeu? Eu acho que esse é o modo de quebrar um condicionamento, um hábito, uma imagem que tem sido cultivada. Você fala sobre isso num nível em que a mente consciente não está totalmente interessada. Isso soa tolo, mas você entende o que quero dizer? Digamos, por exemplo que eu tenho um condicionamento; você pode apontá-lo dúzias de vezes, argumentar, mostrar a falácia dele, a estupidez – mas eu ainda continuo. Eu resisto, eu digo o que deveria ser, o que eu, na realidade, deveria fazer nesse mundo, e todo o resto. Mas você vê a verdade, que enquanto a mente está condicionada haverá conflito. Então você penetra ou empurra minha resistência para o lado e chega ao inconsciente, faz com que ele ouça você, porque o inconsciente é muito mais sutil, muito mais rápido. Ele pode estar assustado, mas vê o perigo do medo muito mais rápido do que a mente consciente o faz. Como quando eu estava caminhando na Califórnia no alto das montanhas: eu estava olhando para os pássaros e árvores e observando, e ouvi uma serpente e saltei. Foi o inconsciente que fez o corpo pular; eu vi a serpente quando saltei, estava a dois ou três pés de mim, poderia ter me picado muito facilmente. Se o cérebro consciente estivesse operando, levaria vários segundos.
Bohm: Para alcançar o inconsciente você tem de ter uma ação que não apele diretamente ao consciente.
Krishnamurti: Sim. Isso é afeição, isso é amor. Quando você fala à minha consciência desperta, ela é dura, esperta, sutil, aguda. E você a penetra, penetra-a com seu ver, com sua afeição, com todo o sentimento que tem. Isso opera, nada mais.
Brockwood Park
7 de Outubro de 1972
1. David Bohm, Professor de Física Teórica no Birbeck College, Universidade de Londres; autor de Causalidade & Chance na Física moderna, Teoria Quântica, e A Teoria da Relatividade Especial.
Fundada por Jiddu Krishnamurti em 1935 como uma extensão das Fundações Krishnamurti, a Instituição Cultural Krishnamurti tem por missão a preservação e divulgação dos ensinamentos no Brasil, sempre de acordo com as decisões da K.F.T (Krishnamurti Foundation Trust) e da K.F.A. (Krishnamurti Foundation of America), responsáveis diretas e exclusivas por tudo que se refere aos direitos de publicação, royalties e fiscalização do material publicado através de qualquer meio no Brasil e no mundo.
Ainda que nossos constantes esforços pela disponibilização da obra de Krishnamurti no mercado editorial brasileiro atinjam muito pouco daquilo que poderíamos pretender, buscamos sempre outras formas de levar ao público as notícias mais recentes a respeito dos projetos em andamento ao redor do mundo e o mesmo acesso privilegiado aos ensinamentos de que dispõem sobretudo os leitores de língua inglesa, tanto com relação aos livros quanto ao material digitalizado, tentando garantir os direitos necessários junto às fundações.
Essa é a razão de nosso empenho na distribuição das séries de DVDs produzidas na Inglaterra, nas traduções e parcerias com edições de revistas e jornais internacionais ligados às escolas e a todos os outros projetos ao redor do mundo. Sobretudo nos últimos meses, temos estreitado os laços com as fundações, recebendo inclusive, no dia 5 de junho, a visita de Michael Krohnen, cozinheiro e amigo pessoal de Krishnamurti durante os últimos anos de sua vida, autor do livro Kitchen Chronicles – 1001 lunches with J. Krishnamurti (ainda sem tradução em português).
Com o surgimento de vários novos projetos e atividades em nossa instituição, convidamos nosso público a ampliar cada vez mais o contato conosco, tendo sempre como ponto de referência nosso website e as edições da ICK em Revista, as únicas formas oficiais e legítimas de contato entre as fundações e os leitores brasileiros.
A necessidade de segurança nas relações gera inevitavelmente o sofrimento e o medo. Essa busca de segurança, atrai a insegurança. Já encontrastes alguma vez segurança em alguma de vossas relações? Já? A maioria de nós quer a segurança de amar e ser amado, mas existirá amor quando cada um está a buscar a própria segurança, seu caminho próprio? Nós não somos amados porque não sabemos amar.
Que é o amor? Esta palavra está tão carregada e corrompida, que quase não tenho vontade de empregá-la. Todo o mundo fala de amor – toda a revista e jornal e todo missionário discorre interminavelmente sobre o amor. Amo a minha pátria, amo o prazer, amo a minha esposa, amo a Deus. O amor é uma idéia? Se é, pode então ser cultivado, nutrido, conservado com carinho, moldado, torcido de todas as maneiras possíveis. Quando dizeis que amais a Deus, que significa isso ? Significa que amais uma projeção de vossa própria imaginação, uma projeção de vós mesmo, revestida de certas formas de respeitabilidade, conforme o que pensais ser nobre e sagrado; o dizer “Amo a Deus” é puro contra-senso. Quando adorais a Deus, estais adorando a vós mesmo; e isso não é amor.
Incapazes, que somos, de compreender essa coisa humana chamada amor, fugimos para as abstrações. O amor pode ser a solução final de todas as dificuldades, problemas e aflições humanas. Assim, como iremos descobrir o que é o amor? Pela simples definição? A igreja o tem definido de uma maneira, a sociedade de outra, e há também desvios e perversões de toda a espécie. A adoração de uma certa pessoa, o amor carnal, a troca de emoções, o companheirismo – será isso o que se entende por amor? Essa foi sempre a norma, o padrão, que se tornou tão pessoal, sensual, limitado, que as religiões declararam que o amor é muito mais do que isso. Naquilo que denominam “amor humano”, vêem elas que existe prazer, competição, ciúme, desejo de possuir, de conservar, de controlar, de influir no pensar de outrem e, sabendo da complexidade dessas coisas, dizem as religiões que deve haver outra espécie de amor – divino, belo, imaculado, incorruptível.
Em todo o mundo, certos homens chamados “santos” sempre sustentaram que olhar para uma mulher é pecaminoso; dizem que não podemos nos aproximar-nos de Deus se nos entregamos ao sexo e, por conseguinte, o negam, embora eles próprios se vejam devorados por ele. Mas, negando o sexo, esses homens arrancam os próprios olhos, decepam a própria língua, uma vez que estão negando toda a beleza da Terra. Deixaram famintos os seus corações e a sua mente; são entes humanos “desidratados”; baniram a beleza, porque a beleza está ligada à mulher.
Pode o amor ser dividido em sagrado e profano, humano e divino, ou só há amor? O amor é para um só e não para muitos? Se digo “Amo-te”, isso exclui o amor do outro? O amor é pessoal ou impessoal? Moral ou imoral? Familial ou não familial? Se amais a humanidade, podeis amar o indivíduo? O amor é sentimento? Emoção ? O Amor é prazer e desejo ? Todas essas perguntas indicam – não é verdade? – que temos idéias a respeito do amor, idéias sobre o que ele deve ou não deve ser, um padrão, um código criado pela cultura em que vivemos.
Assim, para examinarmos a questão do amor – o que é o amor – devemos primeiramente libertar-nos das incrustações dos séculos, lançar fora todos os ideais e ideologias sobre o que ele deve ou não deve ser. Dividir qualquer coisa em o que deveria ser e o que é, é a maneira mais ilusória de enfrentar a vida.
Ora, como iremos saber o que é essa chama que denominamos amor – não a maneira de expressá-lo a outrem, porém o que ele próprio significa? Em primeiro lugar rejeitarei tudo o que a igreja, a sociedade, meus pais e amigos, todas as pessoas e todos os livros disseram a seu respeito, porque desejo descobrir por mim mesmo o que ele é. Eis um problema imenso, que interessa a toda humanidade; há milhares de maneiras de defini-lo e eu próprio me vejo todo enredado neste ou naquele padrão, conforme a coisa que, no momento, me dá gosto ou prazer. Por conseguinte, para compreender o amor, não devo em primeiro lugar libertar-me de minhas inclinações e preconceitos? Vejo-me confuso, dilacerado pelos meus próprios desejos e, assim, digo entre mim: “Primeiro, dissipa a tua confusão. Talvez tenhas possibilidade de descobrir o que é amor através do que ele não é”.
O governo ordena: “Vai e mata, por amor à pátria!” Isso é amor? A religião preceitua: “Abandona o sexo, pelo amor de Deus”. Isso é amor? O amor é desejo? Não digas que não. Para a maioria de nós, é; desejo acompanhado de prazer, prazer derivado dos sentidos, pelo apego e o preenchimento sexual. Não sou contrário ao sexo, mas vede o que ele implica. O que o sexo vos dá momentaneamente é o total abandono de vós mesmos, mas, depois, voltais à vossa agitação; por conseguinte, desejais a constante repetição desse estado livre de preocupação, de problema, do “eu”. Dizeis que amais vossa esposa. Nesse amor está implicado o prazer sexual, o prazer de terdes uma pessoa em casa para cuidar dos filhos e cozinhar. Dependeis dela; ela vos deu o seu corpo, suas emoções, seus incentivos, um certo sentimento de segurança e bem-estar. Um dia, ela vos abandona; aborrece-se ou foge com outro homem, e eis destruído todo o vosso equilíbrio emocional; essa perturbação, de que não gostais, chama-se ciúme. Nele existe sofrimento, ansiedade, ódio e violência. Por conseguinte, o que realmente estais dizendo é: “Enquanto me pertences, eu te amo; mas, tão logo deixes de pertencer-me, começo a odiar-te. Enquanto posso contar contigo para a satisfação de minhas necessidades sociais e outras, amo-te, mas, tão logo deixes de atender a minhas necessidades, não gosto mais de ti”. Há, pois, antagonismo entre ambos, há separação, e quando vos sentis separados um do outro, não há amor. Mas, se puderdes viver com vossa esposa sem que o pensamento crie todos esses estados contraditórios, essas intermináveis contendas dentro de vós mesmo, talvez então – talvez – sabereis o que é o amor. Sereis então completamente livre, e ela também; ao passo que, se dela dependeis para os vossos prazeres, sois seu escravo. Portanto, quando uma pessoa ama, deve haver liberdade – a pessoa deve estar livre, não só da outra, mas também de si própria.
No estado de pertencer a outro, de ser psicologicamente nutrido por outro, de outro depender – em tudo isso existe sempre, necessariamente, a ansiedade, o medo, o ciúme, a culpa, e enquanto existe medo, não existe amor. A mente que se acha nas garras do sofrimento jamais conhecerá o amor; o sentimentalismo e a emotividade nada, absolutamente nada, têm que ver com o amor. Por conseguinte, o amor nada tem em comum com o prazer e o desejo.
O amor não é produto de pensamento, que é o passado. O pensamento não pode de modo nenhum cultivar o amor. O amor não se deixa cercar e enredar pelo ciúme; porque o ciúme vem do passado. O amor é sempre o presente ativo. Não é “amarei” ou “amei”. Se conheceis o amor, não seguireis ninguém. O amor não obedece. Quando se ama, não há respeito nem desrespeito.
Não sabeis o que significa amar realmente alguém – amar sem ódio, sem ciúme, sem raiva, sem procurar interferir no que o outro faz ou pensa, sem condenar, sem comparar – não sabeis o que isto significa? Quando há amor, há comparação? Quando amais alguém de todo o coração, com toda a vossa mente, todo o vosso corpo, todo o vosso ser, existe comparação? Quando vos abandonais completamente a esse amor, não existe “o outro”.
O amor tem responsabilidades e deveres, e emprega tais palavras? Quando fazeis alguma coisa por dever, há nisso amor? No dever não há amor. A estrutura do dever, na qual o ente humano se vê aprisionado, o está destruindo. Enquanto sois obrigado a fazer uma coisa, porque é vosso dever fazê-la, não amais a coisa que estais fazendo. Quando há amor, não há dever nem responsabilidade.
A maioria dos pais, infelizmente, pensa que são responsáveis por seus filhos, e seu senso de responsabilidade toma a forma de preceituar-lhes o que devem fazer e o que não devem fazer, o que devem ser e o que não devem ser. Querem que os filhos conquistem uma posição segura na sociedade. Aquilo a que chamam de responsabilidade faz parte daquela respeitabilidade que eles cultivam; e a mim me parece que, onde há respeitabilidade, não existe ordem; só lhes interessa o tornar-se um perfeito burguês. Preparando os filhos para se adaptarem à sociedade, estão perpetuando a guerra, o conflito e a brutalidade. Pode-se chamar a isso zelo e amor?
Zelar, com efeito, é cuidar como se cuida de uma árvore ou de uma planta, regando-a, estudando as suas necessidades, escolhendo o solo mais adequado, tratá-la com carinho e ternura; mas, quando preparais os vossos filhos para se adaptarem à sociedade, os estais preparando para serem mortos. Se amásseis vossos filhos, não haveria guerras.
Quando perdeis alguém que amais, verteis lágrimas; essas lágrimas são por vós mesmo ou pelo morto? Estais pranteando a vós mesmo ou ao outro? Já chorastes por outrem? Já chorastes o vosso filho, morto no campo de batalha? Chorastes, decerto, mas essas lágrimas foram produto de autocompaixão ou chorastes porque um ente humano foi morto? Se chorais por autocompaixão, vossas lágrimas nada significam, porque estais interessado em vós mesmo. Se chorais porque vos foi arrebatada uma pessoa em quem “depositastes” muita afeição, não se trata de afeição real. Se chorais a morte de vosso irmão, chorai por ele! É muito fácil chorardes por vós mesmo porque ele partiu. Aparentemente, chorais porque vosso coração foi atingido, mas não foi atingido por causa dele; foi atingido pela autocompaixão, e a autocompaixão vos endurece, vos fecha, vos torna embotado e estúpido.
Quando chorais por vós mesmo, será isso amor? – chorar porque ficaste sozinho, porque perdestes o vosso poder; queixar-vos de vossa triste sina, de vosso ambiente – sempre vós a verter lágrimas. Se compreenderdes esse fato, e isso significa pôr-vos em contato com ele tão diretamente como quando tocais uma árvore ou uma coluna ou uma mão, vereis então que o sofrimento é produto do “eu”, o sofrimento é criado pelo pensamento, o sofrimento é produto do tempo. Há três anos eu tinha meu irmão; hoje ele é morto e estou sozinho, desolado, não tenho mais a quem recorrer para ter conforto ou companhia, e isso me traz lágrimas aos olhos.
Podeis ver tudo isso acontecer dentro de vós mesmo, se o observardes. Podeis vê-lo de maneira plena, completa, num relance, sem precisardes do tempo analítico. Podeis ver num momento toda a estrutura e natureza dessa coisa desvaliosa e insignificante, chamada “eu” – minhas lágrimas, minha família, minha nação, minha crença, minha religião – toda essa fealdade está em vós. Quando a virdes com vosso coração, e não com vossa mente, quando a virdes do fundo de vosso coração, tereis então a chave que acabará com o sofrimento.
O sofrimento e o amor não podem coexistir, mas no mundo cristão idealizaram o sofrimento, crucificaram-no para o adorar, dando a entender que ninguém pode escapar ao sofrimento a não ser por aquela única porta; tal é a estrutura de uma sociedade religiosa, exploradora.
Assim, ao perguntardes o que é o amor, podeis ter muito medo de ver a resposta. Ela pode significar uma completa reviravolta; poderá dissolver a família; podeis descobrir que não amais vossa esposa ou marido ou filhos (vós os amais?); podeis ter de demolir a casa que construístes; podeis nunca mais voltar ao templo.
Mas, se desejais continuar a descobrir, vereis que o medo não é amor, a dependência não é amor, o ciúme não é amor, a posse e o domínio não são amor, responsabilidade e dever não são amor, autocompaixão não é amor, a agonia de não ser amado não é amor, que o amor não é o oposto do ódio, como a humildade não é o oposto da vaidade. Dessarte, se fordes capaz de eliminar tudo isso, não à força, porém lavando-o assim como a chuva fina lava a poeira de muitos dias depositada numa folha, então, talvez, encontrareis aquela flor peregrina que o homem sempre buscou sequiosamente.
Se não tendes amor – não em pequenas gotas, mas em abundância; se não estais transbordando de amor, o mundo irá ao desastre. Intelectualmente, sabeis que a unidade humana é a coisa essencial e que o amor constitui o único caminho para ela, mas quem pode ensinar-vos a amar? Poderá uma autoridade, um método, um sistema ensinar-vos a amar? Se alguém vo-lo ensina, isso não é amor. Podeis dizer: “Eu me exercitarei para o amor. Sentar-me-ei todos os dias para refletir sobre ele. Exercitar-me-ei para ser bondoso, delicado e me forçarei a ser atencioso com os outros”? – Achais que podeis disciplinar-vos para amar, que podeis exercer a vontade para amar? Quando exerceis a vontade e a disciplina para amar, o amor vos foge pela janela. Pela prática de um certo método ou sistema de amar, podeis tornar-vos muito hábil, ou mais bondoso, ou entrar num estado de não-violência, mas nada disso tem algo em comum com o amor.
Neste mundo tão dividido e árido não há amor, porque o prazer e o desejo têm a máxima importância, e, todavia, sem amor, vossa vida diária é sem significação. Também, não podeis ter o amor se não tendes a beleza. A beleza não é uma certa coisa que vedes – não é uma bela árvore, um belo quadro, um belo edifício ou uma bela mulher; só há beleza quando o vosso coração e a vossa mente sabem o que é o amor. Sem o amor e aquele percebimento da beleza, não há virtude, e sabeis muito bem que tudo o que fizerdes – melhorar a sociedade, alimentar os pobres – só criará mais malefício, porque quando não há amor, só há fealdade e pobreza em vosso coração e vossa mente. Mas, quando há amor e beleza, sabeis amar, podeis fazer o que desejardes, porque o amor resolverá todos os outros problemas.
Alcançamos, assim, este ponto: Poderá a mente encontrar o amor sem precisar de disciplina, de pensamento, de coerção, de nenhum livro, instrutor ou guia – encontrá-lo assim como se encontra um belo pôr-de-sol?
Uma coisa me parece absolutamente necessária; a paixão sem motivo, a paixão não resultante de compromisso ou ajustamento, a paixão que não é lascívia. O homem que não sabe o que é paixão, jamais conhecerá o amor, porque o amor só pode existir quando a pessoa se desprende totalmente de si própria.
A mente que busca não é uma mente apaixonada, e não buscar o amor é a única maneira de encontrá-lo; encontrá-lo inesperadamente e não como resultado de qualquer esforço ou experiência. Esse amor, como vereis, não é do tempo; ele é tanto pessoal, como impessoal, tanto um só como multidão. Como uma flor perfumosa, podeis aspirar-lhe o perfume, ou passar por ele sem o notardes. Aquela flor é para todos e para aquele que se curva para aspirá-la profundamente e olhá-la com deleite. Quer estejamos muito perto, no jardim, quer muito longe, isso é indiferente à flor, porque ela está cheia de seu perfume e pronta para reparti-lo com todos.
O amor é uma coisa nova, fresca, viva. Não tem ontem nem amanhã. Está além da confusão do pensamento. Só a mente inocente sabe o que é o amor, e a mente inocente pode viver no mundo não inocente. Só é possível encontrá-la, essa coisa maravilhosa que o homem sempre buscou sequiosamente por meio de sacrifícios, de adoração, das relações, do sexo, de toda espécie de prazer e de dor, só é possível encontrá-la quando o pensamento, alcançando a compreensão de si próprio, termina naturalmente. O amor não conhece o oposto, não conhece conflito.
Podeis perguntar: “Se encontro esse amor, que será de minha mulher, de minha família? Eles precisam de segurança”. Fazendo essa pergunta, mostrais que nunca estivestes fora do campo do pensamento, fora do campo da consciência. Quando tiverdes alguma vez estado fora desse campo, nunca fareis uma tal pergunta, porque sabereis o que é o amor em que não há pensamento e, por conseguinte, não há tempo. Podeis ler tudo isto hipnotizado e encantado, mas ultrapassar realmente o pensamento e o tempo – o que significa transcender o sofrimento – é estar cônscio de uma dimensão diferente, chamada “amor”.
Mas, não sabeis como chegar-vos a essa fonte maravilhosa – e, assim, que fazeis? Quando não sabeis o que fazer, nada fazeis, não é verdade? Nada, absolutamente. Então, interiormente, estais completamente em silêncio. Compreendeis o que isso significa? Significa que não estais buscando, nem desejando, nem perseguindo; não existe nenhum centro. Há, então, o amor.
Do livro “Liberte-se do passado”
Krishnamurti: A idéia da reencarnação é tão velha como as montanhas; a idéia de que o homem, por meio de múltiplos renascimentos, passando por inúmeras experiências, chegará finalmente à perfeição, à verdade, a Deus. Ora, o que é isso que renasce, o que é isso que continua? Para mim, essa coisa que supostamente continua nada mais é que uma serie de camadas de memórias, de certas qualidades, certas ações incompletas que foram condicionadas, obstruídas pelo medo nascido da auto-proteção. Agora, essa consciência incompleta é o que nós chamamos o ego, o “eu”. Como expliquei no começo, em minha ligeira palestra de introdução, a individualidade é o acúmulo dos resultados de várias ações que foram obstruídas, oprimidas por certos valores e limitações herdados e adquiridos. Espero não estar tornando tudo muito complicado e filosófico; procurarei simplificar o assunto.
Quando falais no “eu”, entendeis por tal um nome, uma forma, certas idéias, certos preconceitos, certas distinções de classe, qualidades, preconceitos religiosos, e assim por diante, que foram desenvolvidos por meio do desejo de auto-proteção, de segurança e de conforto. Para mim, portanto, o “eu”, baseado numa ilusão, não tem realidade alguma. Portanto, a questão não é saber se existe a reencarnação ou não, se existe ou não uma futura possibilidade de crescimento, mas sim se a mente e o coração podem libertar-se dessa limitação do “eu”, do “meu”.
Haveis perguntado se acredito ou não na reencarnação porque esperais, através da minha garantia, poder postergar o entendimento e a ação no presente, e que chegareis eventualmente a perceber o êxtase da vida ou da imortalidade. Desejais saber se, sendo forçados a viver num ambiente condicionado com limitadas oportunidades, podereis um dia, através dessa miséria e desse conflito, chegar a compreender aquele êxtase da vida, a imortalidade. Visto a hora estar adiantada, sou obrigado a resumir e espero que reflitais sobre o que se segue.
Afirmo que existe a imortalidade; para mim, é uma experiência pessoal, entretanto, ela só poderá ser percebida quando a mente não está procurando um futuro em que haverá de viver mais perfeita, completa e ricamente. A imortalidade é o infinito presente. Para entender o presente com o seu pleno, rico significado, a mente tem que se libertar do hábito da aquisição auto-protetora, e quando ela está por completo desnuda, somente então há a imortalidade.
Do livro “Palestras no Brasil” – segunda edição
A essência do ensino de K. está contida na declaração feita por ele em 1929, quando disse:
“A Verdade é uma terra sem caminho”. O homem não chegará a ela através de organização alguma, de qualquer crença, de nenhum dogma, de nenhum sacerdote ou mesmo um ritual, e nem através do conhecimento filosófico ou da técnica psicológica. Ele tem que descobri-la através do espelho das relações, por meio de compreensão do conteúdo da sua própria mente, mediante a observação, e não pela análise ou dissecação introspectiva. O homem tem construído imagens em si próprio, como muros de segurança – imagens religiosas, políticas, pessoais. Estas se manifestam como símbolos, idéias, crenças. O peso dessas imagens domina o pensamento do homem, as suas relações e a sua vida diária. Tais imagens são as causas de nossos problemas, pois elas dividem os homens. A sua percepção da vida é formada pelos conceitos já estabelecidos em sua mente. O conteúdo de sua consciência é a sua consciência total. Este conteúdo é comum a toda humanidade. A individualidade é o nome, a forma e a cultura superficial que o homem adquire da tradição e do ambiente. A singularidade do homem não se acha na sua estrutura superficial, porém na completa libertação do conteúdo de sua consciência, comum a toda humanidade. Desse modo ele não é um indivíduo.
A liberdade não é uma reação, nem tampouco uma escolha. É pretensão do homem pensar ser livre porque pode escolher. Liberdade é observação pura, sem direção, sem medo de castigo ou recompensa. A liberdade não tem motivo: ela não se acha no fim da evolução do homem e sim, no primeiro passo de sua existência. Mediante a observação começamos a descobrir a falta de liberdade. A liberdade reside na percepção, sem escolha, de nossa existência, da nossa atividade cotidiana.
O pensamento é tempo. Ele nasce da experiência e do conhecimento, coisas inseparáveis do tempo e do passado. O tempo é o inimigo psicológico do homem. Nossa ação baseia-se no conhecimento, portanto, no tempo, e desse modo, o homem é um eterno escravo do passado. O pensamento é sempre limitado e, por conseguinte, vivemos em constantes conflito e numa luta sem fim. Não existe evolução psicológica.
Quando o homem se tornar consciente dos movimentos dos seus próprios pensamentos ele verá a divisão entre o pensador e o pensamento, entre o observador e a coisa observada, entre aquele que experimenta e a coisa experimentada. Ele descobrirá que esta divisão é uma ilusão. Só então haverá observação pura, significando isso percepção sem qualquer sombra do passado ou do tempo. Este vislumbre atemporal produz uma profunda e radical mutação em nossa mente.
A negação total é a essência do positivo. Quando há negação de todas aquelas coisas que o pensamento produz psicologicamente, só então existe o amor, que é compaixão e inteligência.
Esta exposição foi originalmente escrita pelo próprio Krishnamurti, em 21 de outubro de 1980, para ser publicada no livro “Krishnamurti: Os Anos de Realização”, de Mary Lutyens.
I – Alguma vez você fica magoado, senhor?
K – Fisicamente, você quer dizer?
I – Não é bem isso. Não sei como expressá-lo em palavras, mas sentimos em nosso íntimo que as pessoas podem nos causar mal, ferir-nos, fazer-nos infelizes. Alguém diz qualquer coisa e nós nos encolhemos. Refiro-me a isso quando falo em nos magoar. Todos nos magoamos uns aos outros desse jeito. Alguns o fazem deliberadamente, outros sem o saber. Por que ficamos magoados? É tão desagradável!
K – A mágoa física é uma coisa, e a outra é muito mais complexa. Se você for magoado fisicamente, saberá o que fazer. Irá procurar um médico e ele tentará curá-lo. Mas se a lembrança da mágoa persistir, você estará sempre nervoso e apreensivo, o que criará uma forma de medo, justificado pela permanência da lembrança da mágoa passada, que não quer ver repetida. Isso é perfeitamente compreensível e o medo pode tornar-se neurótico ou ser tratado de modo sadio, sem excessiva preocupação. Mas a outra mágoa, a interior, necessita de cuidadosa análise. Precisamos aprender muita coisa sobre ela.
Em primeiro lugar, por que você fica magoado? Desde a infância, este parece ser um fator importante em nossas vidas: não se magoar, não ser ferido por outra pessoa, por uma palavra, por um gesto, por um olhar, por uma experiência. Por que nos magoamos? Porque somos sensíveis, ou porque temos uma imagem de nós mesmos que precisamos proteger, que sentimos ser importante para a nossa existência, uma imagem sem a qual nos sentimos perdidos, confusos? Existem as duas razões: a imagem e a sensibilidade. Compreendem o que queremos dizer com o sermos sensíveis tanto física como interiormente? Se forem sensíveis e um tanto tímidos, retrair-se-ão em si mesmos, erguerão um muro ao redor de si mesmos, a fim de não serem magoados. É o que fazem, não é? Uma vez que tenham sido magoados por uma palavra ou por uma crítica, que os tenham ferido, passam a construir um muro de resistência. Não querem continuar vulneráveis. Vocês podem ter uma imagem, uma idéia de si mesmos de que são importantes, de que são inteligentes, de que sua família é melhor do que as outras, de que disputam jogos melhor do que outros. Vocês têm essa imagem de si mesmos, não têm? E quando a importância dela é posta em dúvida, abalada ou despedaçada, vocês se sentem muito magoados. Há autopiedade, ansiedade, medo. E se o fato se repetir, construirão uma imagem ainda mais forte, mais afirmativa, mais agressiva, etc. Vocês se protegem para que ninguém os perturbem, o que também significa erguer um muro contra qualquer invasão. De modo que tanto o sensível quanto o que faz a imagem produzem os muros de resistência. Sabem o que acontece quando erguem um muro à sua volta? O mesmo que acontece quando constróem um muro muito alto em torno de sua casa. Não vêem os vizinhos, não recebem a luz do sol em quantidade suficiente, vivem num espaço muito reduzido com todos os membros de sua família. E, não tendo espaço bastante, começam a mexer com os nervos uns dos outros, brigam, ficam violentos, desejam ir embora e se revoltam. E se tiverem dinheiro suficiente e suficiente energia, construirão outra casa com outro muro em torno dela, e assim por diante. A resistência implica falta de espaço e é fator de violência.
I – Mas – perguntou um deles – não devemos proteger-nos?
K – Contra o quê? Vocês devem se proteger, naturalmente, da doença, das chuvas e do sol; mas quando perguntam se não devemos nos proteger, não estarão pedindo para erguer um muro a fim de não serem magoados? Pode ser seu irmão ou sua mãe a pessoa contra a qual erguem o muro, pensando em se defender; no fim, porém, isso conduz à sua própria destruição e à destruição da luz e do espaço.
I – Mas – acudiu uma moça de longos cabelos trançados – o que devo fazer quando me magoam? Sei que estou magoada. Eu me magôo com muita freqüência. Que devo fazer? O senhor diz que não se deve erguer um muro de resistência, mas não posso viver com tantas mágoas.
K – Compreenda, se me permite questionar, por que está magoada? E quando se magoa? Olhe para aquela folha ou para aquela flor. É muito delicada e sua beleza está na própria delicadeza. É terrivelmente vulnerável e, no entanto, vive. E você, que se magoa facilmente, acaso se perguntou quando e por que se magoa? Por que você se magoa – quando alguém diz alguma coisa de que não gosta, quando alguém é agressivo, violento com você? Por que você se magoa? Se se magoar e erguer um muro em torno de si mesma, o que significa retraimento, você passará a viver num espaço muito pequeno dentro de si mesma. Nesse espaçozinho não haverá luz nem liberdade e, assim, será mais e mais magoada. Por isso mesmo a questão se resume em saber se você é capaz de viver livre e feliz, sem ser magoada, sem erguer muros de resistência. Essa é a questão importante. Não a maneira de reforçar os muros nem o que fazer quando há um muro ao redor de seu espaçozinho. Portanto, há duas coisas envolvidas nisso: a lembrança da mágoa e a prevenção de mágoas futuras. Se essa lembrança persistir e você lhe acrescentar novas lembranças de mágoas, o seu muro se tornará mais forte e mais alto, o espaço e a luz se tornarão menores e mais embaçados, e haverá grande sofrimento, uma autopiedade cada vez maior e muita amargura. Se você vir com bastante clareza o perigo disso, sua inutilidade, a lástima que isso é, as lembranças passadas se desvanecerão. Mas você tem de ver isso como veria o perigo de uma cobra venenosa. Você sabe que o perigo é mortal e não se aproxima dele. Consegue ver da mesma forma o perigo das lembranças passadas com suas mágoas, seus muros de autodefesa? Consegue ver realmente, assim como vê esta flor? Se o vir, ele inevitavelmente desaparecerá.
Assim, você já sabe o que fazer com as mágoas passadas. E como olhará as futuras? Não será construindo muros. Isso é claro, não é? Se o fizer, será cada vez mais magoada. Observe com cuidado, por favor. Sabendo que você poderá ser magoada, como impedirá que a mágoa ocorra? Se alguém lhe disser que você não é inteligente nem bonita, você se sentirá magoada, ou zangada, que é outra forma de resistência. Ora, o que você pode fazer? Você viu como as mágoas passadas se desvanecem sem o menor esforço; viu porque ouviu e prestou atenção. Agora, quando alguém lhe disser alguma coisa desagradável, fique atenta; preste muita atenção. A atenção impedirá que a mágoa atinja o alvo. Você compreendeu o que queremos dizer com atenção?
I – O senhor quer dizer concentração, não é?
K – Nâo exatamente. A concentração é uma forma de resistência, uma forma de exclusão, um fechamento de porta, uma retirada. A atenção é algo muito diferente. Na concentração há um centro de onde se realiza a ação da observação. Onde há um centro, o raio de observação é muito limitado. Onde não há centro, a observação é vasta, clara. Isso é atenção.
I – Receio que não compreendemos nada disso, senhor.
K – Olhem para aquelas colinas, vejam a luz que as inunda, vejam as árvores, ouçam passar o carro de bois; vejam as folhas amarelas, o leito seco do rio, o corvo sentado no galho. Olhem para tudo isso. Se olharem a partir de um centro, com o seu preconceito, seu medo, sua simpatia e sua antipatia, não verão a vasta extensão da terra. Seus olhos estarão enevoados, terão ficado míopes e a sua visão será deformada. Não podem olhar para tudo isso, para a beleza do vale, para o céu, sem o centro? Pois isso é atenção. Portanto, ouçam com atenção e, sem o centro, a crítica alheia, o insulto, a raiva, o preconceito alheios. E porque não há centro nessa atenção, não há possibilidade de serem magoados. Mas onde há centro, a mágoa é inevitável. E a vida se torna um grito de medo.
O Começo do Aprendizado – Editora Cultrix
Titulo do Original – Beginnings of learning
MEDITAÇÃO
O Significado da “Busca”; problemas atinentes à prática (adestramento) e ao controle; natureza do silêncio.
Desejo falar a respeito de um assunto que se me afigura de suma importância; compreendendo-o, ficaremos, talvez, habilitados a alcançar, por nós mesmos, um percebimento total da vida e, portanto, a agir de maneira completa, livres e felizes.
Andamos sempre a buscar uma certa coisa misteriosa, porque nos vemos insatisfeitos com a vida que estamos levando, com a superficialidade de nossas atividades, tão pouco expressivas, às quais, entretanto, queremos dar significação e sentido; mas esta é uma atividade do intelecto e, por conseguinte, será sempre superficial, ilusória, e, por fim, sem nenhum significado. Todavia, sabendo de tudo isso – sabendo que nossos prazeres são efêmeros e nossas atividades diárias mera rotina; sabendo também que nossos problemas – tantos deles – talvez nunca possam ser resolvidos; e já descrentes de tudo, sem fé nos valores tradicionais, nos instrutores, nos gurus, nas sanções da Igreja e da sociedade – continuamos, a maioria de nós, a tatear, a buscar alguma coisa de real valia, incontaminada pelo pensamento, um certo estado extraordinário, de real beleza e êxtase. A maioria de nós, parece-me, deseja descobrir algo que seja duradouro, que não possa corromper-se facilmente. Esquecendo a realidade objetiva, entregamo-nos – sem emoção ou sentimentalismo – a esse profundo ansiar, essa profunda inquirição, que porventura nos dará acesso a uma realidade não mensurável pelo pensamento e que não cabe em nenhuma categoria de fé ou de crença. Mas, tem o buscar alguma significação?
Vamos examinar a questão da meditação. Sendo um assunto bastante complexo, antes de começarmos a examiná-lo temos de compreender claramente esta nossa busca, este desejo de experiência, de descobrir uma realidade. Devemos compreender a significação do buscar, esse desejo de verdade, esse tatear intelectual por uma coisa nova, independente do tempo, não criada por nossas exigências e necessidades, nossas compulsões e desespero. Pode achar-se a verdade mediante busca? Ela é reconhecível quando a achamos? Se a achamos, podemos dizer: “Eis a verdade”,”Eis o real”? Tem a busca algum significado? A maioria dos indivíduos religiosos fala sem cessar sobre a busca da Verdade; e nós perguntamos se se pode buscar a Verdade. Na idéia de buscar, de achar, não está também contida a idéia de reconhecimento, a idéia de que, achando uma coisa, devo ser capaz de reconhecê-la? E o reconhecimento não supõe conhecimento prévio? A Verdade é reconhecível – no sentido de ter sido antes experimentada, de modo que possamos dizer: “Ei-la”? Assim, que valor tem o buscar? Ou, se o buscar não tem valor algum, o que vale é apenas a observação constante, o constante escutar? (que não é a mesma coisa que buscar). Na observação constante não há movimento do passado. “Observar” significa “ver claramente”. Para vermos com clareza, necessitamos de liberdade – precisamos estar livres do ressentimento, da inimizade, do preconceito, da animosidade, livres de todas as memórias que armazenamos como saber e que impedem o ver. Quando existe essa capacidade, essa liberdade com observação constante, não só das coisas exteriores, mas também das coisas interiores, de tudo o que se está passando, que necessidade há, então, de buscar – se o fato – o que é – está à vossa frente para ser observado? Mas, no mesmo instante em que queremos alterar “o que é”, começa a deformação. No observar livremente, sem deformação, sem avaliação, sem nenhum desejo de prazer, no simples observar, verifica-se uma extraordinária transformação do que é.
Em geral, queremos preencher nossa vida com conhecimentos, entretenimentos, com crenças e aspirações espirituais, coisas que, quando as observamos, têm muito pouco valor; desejamos ter uma experiência transcendental, acima de todas as coisas mundanas; desejamos experimentar algo imenso, sem limites, atemporal. Para “experimentarmos” o imensurável, temos de compreender o significado da experiência. Porque desejamos “experiência”?
Por favor, não aceiteis nem rejeiteis o que o orador está dizendo; examinai-o! O orador – mais uma vez, sejamos precisos a este respeito – o orador não tem nenhum valor (ao vos servirdes de um telefone, não obedeceis ao que ele diz, O telefone não é nenhuma autoridade, mas vós o escutais.) Se escutais com atenção, nessa atenção há afeição; não há concordância, nem discordância, porém uma mente disposta a dizer: “Ouçamos o que ele está dizendo, e vejamos se tem algum valor; tratemos de discernir o que é verdadeiro e o que é falso”. Não aceiteis nem rejeiteis, mas observai e escutai, não só o que se esta dizendo, mas também vossas próprias reações e as deformações que produzis enquanto estais escutando; vede vossos preconceitos, vossas imagens, vossas experiências, vede a sua função de impedir-vos de escutar.
Perguntamos: Qual o significado da experiência? Tem ela alguma significação? Pode a experiência despertar a mente que está dormindo, a mente que chegou a certas conclusões e se acha dominada e condicionada por crenças? Pode a experiência despertá-la, destruir toda essa estrutura? Essa mente tão condicionada, tão oprimida por problemas sem conta, pelo desespero e a aflição – essa mente é capaz de reagir a algum desafio? É? E, se reage, sua reação não é necessariamente inadequada e, portanto, conducente a mais conflito? Essa perene busca de experiências mais amplas, mais profundas, transcendentais, é apenas uma maneira de fugirmos à realidade, ao que é – que somos nós mesmos e nossa mente condicionada. Que necessidade tem de qualquer experiência a mente verdadeiramente desperta, inteligente e livre? Luz é luz, e não pede mais luz. O desejo de mais experiência e fuga ao fato real, ao que é.
Se estamos livres dessa incessante busca, livres da exigência e do desejo de experimentar coisas extraordinárias, podemos passar a investigar o que é meditação. Esta palavra, tal como as palavras “amor”, “morte”, “beleza”, “felicidade”, está sobremaneira “carregada”. Há muitas escolas que ensinam a meditar. Mas, para compreendermos o que é meditação, temos de lançar as bases da conduta virtuosa. Sem essa base, a meditação é, em verdade, uma forma de auto-hipnose. Se não estamos livres da cólera, do ciúme, da inveja, da avidez, da ganância, do ódio, da competição, do desejo de sucesso – de todas as formas “morais” e “respeitáveis” disso que se considera “conduta virtuosa” – se não lançamos a base correta, se não vivemos uma vida diária isenta da deformação causada pelo nosso medo, ansiedade, avidez, etc., a meditação pouco importa. O lançamento daquela base é sumamente importante. Assim, perguntamos: Que é virtude? Que é moralidade? Não digais, por favor, que esta e uma pergunta “burguesa”, sem significação numa sociedade permissiva. Não nos interessa essa espécie de sociedade; o que nos interessa é uma vida totalmente livre do medo, uma vida capaz de amor profundo e inalterável. Sem ela, a meditação se torna uma digressão, assemelha-se a uma droga que se toma – como tantos o fazem – para ter uma experiência maravilhosa… e continuar a viver uma vida vulgar e insignificante. Os que tomam drogas para terem experiências extraordinárias vêem talvez um pouco mais intensamente as cores, tornam-se talvez um pouco mais sensíveis e, com a sensibilidade adquirida nesse estado quimicamente provocado, talvez possam ver sem nenhum espaço entre o “observador” e a “coisa observada”; mas, passado o efeito químico, ei-los de volta ao mesmo lugar onde estavam, de volta ao seu medo, seu tédio, sua velha rotina – e, portanto, obrigados a tomar de novo a droga.
A menos que se lance a base da virtude, a meditação se torna um artifício para controlar a mente, torná-la quieta, forçá-la a ajustar-se ao padrão de um sistema que diz: “Faze estas coisas, e terás uma valiosa recompensa”. Mas, essa mente – não importa o que façamos por meio de todos os métodos e sistemas existentes – permanecerá insignificante, vulgar, condicionada e, por conseguinte, sem valor. Cumpre-nos investigar o que é virtude, o que é conduta. Conduta é resultado do condicionamento ambiente, da sociedade, da cultura em que a pessoa foi criada? Se vos comportais de acordo com esse condicionamento, isso é virtude? Ou consiste a virtude em estar-se livre da moralidade social, de avidez, de inveja, etc. – coisas consideradas altamente respeitáveis? Pode-se cultivar a virtude? E, se ela pode ser cultivada, não se torna uma coisa mecânica e, por conseguinte, sem nenhuma “virtude”? A virtude é uma coisa viva, fluente, que se renova constantemente e de maneira nenhuma pode ser “ajuntada” no tempo. Isso é como dizer que se pode cultivar a humildade. Pode-se cultivar a humildade? Só o homem vaidoso “cultiva” a humildade; mas esse homem, não importa o que cultive, permanecerá vaidoso. Mas, quando se vê claramente a natureza da vaidade e do orgulho, esse próprio ver liberta da vaidade e do orgulho; e, então, existe a humildade. Se está bem claro isto, podemos passar a investigar o que é meditação. Se não sois capaz de meditar verdadeiramente, com profundeza e seriedade – não por um ou dois dias apenas, e depois desistirdes – nesse caso, peço-vos o favor de não falar em meditação. A meditação, quando a compreendemos deveras, é uma das coisas mais maravilhosas deste mundo; mas não tendes possibilidade de compreendê-la se não tiverdes terminado o vosso buscar, tatear, desejar, vossa sofreguidão de agarrar uma certa coisa que pensais ser a Verdade, mas que é apenas vossa própria projeção. Só podeis alcançar o estado de meditação quando já não estais a exigir nenhuma espécie de experiência, quando compreendeis a confusão em que estais vivendo, a desordem existente em vossa vida. Com a observação dessa desordem, vem a ordem – uma ordem não antecipadamente planejada. Se se fez essa observação – a qual, em si, é meditação – pode-se então perguntar, não só o que é meditação, mas também o que não é meditação, porque na negação do que é falso encontra-se a verdade.
Evidentemente, é falso qualquer sistema ou método que ensina a meditar. Isso é fácil de perceber, intelectual e logicamente, porque, quando nos exercitamos de acordo com um método – por mais nobre que este seja, por mais antigo, ou moderno, ou popular – estamo-nos convertendo em máquinas, executando repetidamente o mesmo ato com o fim de alcançar alguma coisa. Na meditação, o fim não difere dos meios. Mas, o método vos promete alguma coisa; é um meio que leva a um fim. Se o meio é mecânico, o fim será um produto da máquina; é a mente mecânica que diz: “Obterei tal coisa”. Temos de estar completamente livres de todos os métodos e sistemas; isso já é o começo da meditação; já estamos a negar uma coisa que é totalmente falsa e sem significação. E há, ainda, os que praticam o percebimento. Pode-se “praticar” percebimento? Se o fazeis, então, em todo o tempo que estais “praticando percebimento”, vos estais tornando desatento. Portanto, ficai cônscio da desatenção; não vos exerciteis para vos tomardes atento; se estais cônscio da desatenção, desse percebimento vem a atenção, e não é necessário “praticá-la”. Compreendei isso, que é tão claro e tão simples. Não tendes necessidade de ir a Burma, à China, à Índia – lugares muito românticos, mas onde se vive fora da realidade. Lembro-me de uma ocasião em que eu viajava de automóvel, na Índia, com um grupo de pessoas. Eu ia sentado à frente, ao lado do motorista e, atrás, três pessoas discorriam a respeito do percebimento – pois pretendiam conversar comigo sobre esta matéria. O carro ia a toda velocidade. Na estrada achava-se uma cabra, e o motorista, por inadvertência, esmagou o pobre animal. Os cavalheiros que vinham atrás, falando sobre o percebimento, nada perceberam! Estais rindo; mas é isso mesmo o que todos nós estamos fazendo: muito interessados, intelectualmente, na idéia do percebimento, na investigação verbal, dialética, de opiniões, entretanto cegos ao que se está passando na realidade.
Não há nada para “praticar”; só há a coisa viva. E apresenta-se, aí, a pergunta: Como controlar o pensamento? O pensamento está sempre a divagar; quereis pensar numa coisa, mas ele foge para outra. Mandam-nos “praticar”, controlar; pensar numa imagem, numa sentença, em qualquer coisa – concentrar-nos; o pensamento “dispara” noutra direção, fazemo-lo voltar… e essa batalha, esse vaivém, prossegue indefinidamente. Assim, pergunta-se: Que necessidade há de controle do pensamento, e quem é a entidade que irá controlar o pensamento? Segui-me atentamente. A menos que seja compreendida esta pergunta real, não se poderá compreender o significado da meditação. Quando digo: “Tenho de controlar o pensamento”, quem é o “controlador”, o censor? O censor é diferente da coisa a que deseja controlar, moldar, alterar? Não são ambos (o censor e a coisa) a mesma entidade? Que sucede quando o pensador percebe que ele é o pensamento (ele o é, de fato); que o experimentador é a experiência – que sucede, então? Que cumpre fazer? Entendeis? O pensador é o pensamento, mas o pensamento se põe a divagar; então, o pensador, considerando-se separado, diz: “Tenho de controlá-lo”. O pensador é diferente da coisa chamada “pensamento”? Se não há pensamento, há pensador?
Que sucede quando o pensador percebe que ele é o pensamento? Que acontece, realmente, quando o “pensador” é o pensamento, assim como o “observador” é a coisa observada? Que acontece? Não existe mais separação, divisão e, por conseguinte, não há conflito; conseqüentemente, já não há necessidade de controlar ou moldar o pensamento. Que sucede então? Existe divagação do pensamento? Antes, controlava-se o pensamento, concentrava-se o pensamento, e havia conflito entre o “pensador”, que queria controlar o pensamento”, e o pensamento que queria divagar. Isso é uma coisa que acontece com todos nós, a todas as horas. Depois, repentinamente, percebe-se que o “pensador” é o pensamento – percebimento real, e não uma declaração verbal. E, então, que ocorre? Existe isso que se chama “divagação do pensamento”? Só quando o observador difere do pensamento, só então ele o “censura” – diz: “Este pensamento é correto, este pensamento é incorreto”, ou “o pensamento está divagando e tenho de controlá-lo”. Mas, quando o pensador percebe que ele é o pensamento, existe alguma divagação? Penetrai nisso, senhor, não aceiteis o que estais ouvindo, mas vede o fato por vós mesmo. Só quando há resistência, há conflito. A resistência é criada pelo pensador, que se considera separado do pensamento; mas, quando o pensador descobre ser ele o próprio pensamento, termina a resistência – o que não significa deixar o pensamento à solta; pelo contrário.
O conceito de controle e de concentração passa por uma total transformação: torna-se atenção – coisa muito diferente. Se se compreende a natureza da atenção, se se compreende que a atenção pode focalizar-se, percebe-se ser ela inteiramente diferente da concentração, que é exclusão. Perguntareis, então: “Posso fazer alguma coisa sem concentração? Não necessito de concentração para fazer alguma coisa?” Mas, não podeis fazer uma coisa com atenção? – esta não é concentração. “Atenção” significa aplicação total – quer dizer, escutar, ouvir, ver com a totalidade de nosso ser – com nosso corpo, nossos nervos, nossos olhos, nossos ouvidos, nossa mente, nosso coração, tudo. Nessa atenção total – na qual não existe divisão – pode-se fazer qualquer coisa; e nessa atenção não há resistência de espécie alguma. E, agora, cabe-nos considerar se a mente, que inclui o cérebro – este cérebro que anda tão condicionado, que é o resultado de milhares de anos de evolução, que é o depósito da memória – pode tornar-se quieta. Porque só quando a mente total se acha em silêncio, quieta, pode haver percepção, pode-se ver claramente, livre de confusão. Como pode a mente ficar quieta, em silêncio? Não sei se já verificastes por vós mesmo que, para olhardes uma bela árvore, ou uma nuvem cheia de luz e de glória, deveis olhar em completo silêncio, pois, de contrário, não se está olhando a árvore diretamente, porém através de uma certa imagem de prazer ou da lembrança de ontem; não se está olhando realmente a árvore: está-se olhando a imagem, em vez do fato.
Assim, perguntamos: Pode a totalidade da mente – que inclui o cérebro – ficar quieta? Muitas pessoas têm feito essa pergunta – pessoas verdadeiramente sérias – mas não conseguiram achar-lhe a resposta. Recorreram a artifícios, pois lhes disseram que a mente pode quietar-se mediante a repetição de palavras. Já experimentastes isto: recitar “ave-marias’ ou aquelas palavras sânscritas que certas pessoas trazem da Índia – mantras; repetir certas palavras para quietar a mente? Não importa qual seja a palavra, mas deve ser recitada com ritmo: coca-cola, qualquer palavra – repeti-a muitas vezes, e vereis como a mente se torna quieta. Mas essa mente aquietada está embotada; não é uma mente sensível, vigilante, ativa, viva, apaixonada, “intensa”. A mente embotada, embora diga: “Tive experiências extraordinárias, transcendentais”, está enganando a si própria.
A solução, portanto, não se encontra na repetição de palavras, nem no forçar a mente; muitos artifícios já têm sido impostos à mente a fim de aquietá-la. Entretanto, sabemos em nosso íntimo que, se a mente está quieta, não há mais nada que fazer, porque existe então a verdadeira percepção.
Como pode a mente – inclusive o cérebro – ficar completamente quieta? Recomendam alguns respirar adequadamente, tomando profundas inspirações, para oxigenar mais o sangue. A mente vulgar, limitada, pode – à força de respirarmos muito profundamente, dia após dia – tornar-se quieta; mas continua a ser o que é: vulgar e limitada. E, que tal a ioga? Aqui também há muitas coisas que considerar. Ioga significa “destreza na ação”, e não meramente a prática de certos exercícios, necessários para manter o corpo saudável, forte, sensível (o corpo precisa também ser alimentado adequadamente, e não empanturrado de carne, etc. – Não entraremos em minúcias a este respeito, pois provavelmente todos vós sois carnívoros). A “destreza na ação” exige grande sensibilidade do corpo, leveza do corpo, alimentação correta e não o que o paladar exige ou o que estais acostumado a comer.
Que cumpre então fazer? Quem faz esta pergunta? Vê-se muito claramente que nossa vida está em desordem, tanto interior como exteriormente; e a ordem, entretanto, é necessária, e deve ser tão perfeita como a ordem matemática; mas a ordem só pode ser estabelecida pela observação da desordem, e não pelo ajustar-nos a um plano de ordem, conforme um outro a concebe ou nós mesmos a concebemos. Do ver, do estar cônscio da desordem, resulta a ordem. Vê-se também que a mente deve tornar-se sobremodo quieta, sensível, vigilante, livre de todo e qualquer hábito, físico ou psicológico. Como conseguir isso? Quem faz esta pergunta? É a mente “tagarela” que a faz, a mente que possui tantos conhecimentos? Aprendeu ela uma coisa nova, ou seja que “só posso ver muito claramente quando estou quieto e, por conseguinte, tenho de ficar quieto”? Digo, então: “Como posso tornar-me quieto?” – Ora, essa pergunta é essencialmente errônea; no momento em que se pergunta “como”, está-se em busca de um sistema e, portanto, destruindo a própria coisa que se quer investigar, ou seja: Como pode a mente tornar-se completamente quieta – não mecanicamente, não forçada, obrigada a tornar-se quieta? A mente que está quieta, sem ter sido forçada a quietar-se, é sobremodo ativa, sensível, desperta. Mas, quando se pergunta “como”, cria-se a separação entre o observador e a coisa observada.
Ao compreendermos que não há método, nem sistema, nem mantra, nem instrutor, nem nada; neste mundo, que possa ajudar-nos a quietar-nos; quando percebemos a verdade de que só a mente quieta vê – a mente fica tranqüila.
Ora bem, a natureza do silêncio tem grande importância. A mente limitada pode aquietar-se em seu reduzido espaço; esse reduzido espaço, com sua limitada quietação, é a coisa mais morta que pode existir; vós o sabeis. Mas, a mente que tem um espaço sem limites, mais aquela quietude, aquele silêncio, e nenhum centro – como “eu”, como “observador” – essa mente é muito diferente. Naquele silêncio não existe nenhum observador. Essa qualidade de silêncio dispõe de um vasto espaço; é um silêncio sem limites e intensamente ativo. A atividade desse silêncio é toda diferente da atividade egocêntrica. Se a mente chegou tão longe (em verdade não é “tão longe”, pois trata-se de uma coisa que está sempre presente, mas nós não sabemos olhar…), então, talvez, aquilo que o homem vem buscando há tantos séculos – Deus, a Verdade, o Imensurável, “o que não tem nome”, o Eterno – se apresentará, sem ter sido chamado. Bem-aventurado esse homem: para ele existe a Verdade e o êxtase.
A ATIVIDADE MECÂNICA DO PENSAMENTO
“A mente que compreendeu o inteiro movimento do pensamento torna-se sobremodo quieta, absolutamente silenciosa.”
Estivemos falando sobre a importância do pensamento e ao mesmo tempo de sua não importância; de como o pensamento é capaz de enorme atividade e, dentro de seu próprio campo, só tem liberdade limitada. Falamos também acerca de um estado mental totalmente descondicionado. Nesta manhã, podemos considerar esta questão do condicionamento – não apenas o condicionamento cultural, superficial, mas também considerar porque há condicionamento. Podemos investigar a natureza da mente não condicionada, da mente que transcendeu todo condicionamento. Cumpre-nos penetrar bem fundo nesta questão, a fim de descobrirmos o que é o amor. E, compreendendo o que é o amor, estaremos aptos a compreender a pleno o significado da morte.
Assim, em primeiro lugar, tratemos de averiguar se a mente pode tornar-se total e completamente livre de condicionamento. É bem óbvio que somos condicionados superficialmente pela cultura, pela sociedade, pela propaganda de que nos vemos rodeados, e também pela nacionalidade, por determinada religião, pela educação e pelas influências ambientes. Parece-me bastante fácil e simples ver como a maioria dos entes humanos, de todos os países e raças, estão condicionados pelas respectivas culturas e religiões. São eles moldados e mantidos dentro de um determinado padrão. Esse condicionamento é bastante fácil de rejeitar.
Mas, há o condicionamento mais profundo, como, por exemplo, uma atitude agressiva perante a vida. A agressividade implica tendência de domínio, busca de poder, de posses, de prestígio. Para nos libertarmos desse condicionamento, temos de mergulhar bem fundo em nós mesmos, porquanto ele é muito sutil e multiforme. Pode uma pessoa julgar que não é agressiva, mas, se declarada ou não declaradamente, ela tem algum ideal, ou opinião, ou escala de valores, existe então uma tendência para a arrogância, que se tornará gradualmente agressiva e violenta. Qualquer um pode observar isso em si mesmo. Atrás da própria palavra “agressividade” – ainda que a pronunciemos muito docemente – há um certo impulso, uma atividade furtiva e predominante, imperiosa, a qual se torna cruel e violenta. Esse condicionamento agressivo precisa ser descoberto, para vermos se o herdamos do animal ou se nos tornamos agressivos pelo prazer de nos impormos aos outros, de tomar-lhes a frente.
Outra forma de condicionamento é o que resulta da comparação. “comparamo-nos” com aquilo que consideramos nobre ou heróico, com o que gostaríamos de ser, em oposição ao que realmente somos. A atividade comparativa é uma forma de condicionamento; essa atividade, por sua vez, é extremamente sutil. Comparo-me com alguém que é um pouco mais inteligente ou fisicamente mais belo do que eu. Secreta ou abertamente, há, em vosso interior, um constante monólogo de caráter comparativo. Observai isso em vós mesmo. Onde há comparação, há sempre uma certa forma de agressividade, uma determinação de conseguir o que queremos, e, quando não o conseguimos, um sentimento de frustração, de inferioridade. Desde a infância somos condicionados para comparar. Nosso sistema educativo baseia-se na comparação – dar notas, fazer exames. Quando nos comparamos com alguém que é mais inteligente, sentimos inveja, despeito, e segue-se o conflito. Comparação implica medida; estou a medir-me, em comparação com uma coisa que se me afigura melhor ou mais nobre.
Pergunta-se: “Pode a mente libertar-se desse condicionamento social e cultural, desse medir e comparar, do condicionamento de medo, de prazer, de recompensa e de castigo? Nossas estruturas morais e religiosas baseiam-se totalmente nesse condicionamento. Por que razão somos condicionados? Vemos as influências externas que nos estão condicionando e, interiormente, a “voluntária necessidade” de sermos condicionados. Porque aceitamos tal condicionamento? Porque se deixou a mente condicionar? Qual o fator que está atrás de tudo isso? Por que razão eu, nascido num certo país, numa certa cultura, que me denomino hindu, com toda a carga de superstição e tradição imposta pela família, pela sociedade – por que razão aceito esse condicionamento? Qual o impulso existente atrás disso? Qual o fator que constantemente exige, aceita, cede ou resiste a esse condicionamento? Vemos que desejamos estar em segurança, numa sociedade que está seguindo determinado padrão. Se não observamos esse padrão, podemos perder nosso emprego, ficar sem dinheiro, não sermos considerados entes humanos respeitáveis. Contra ele nasce a revolta, e essa revolta forma o seu peculiar condicionamento – como está acontecendo com a maioria dos jovens, hoje em dia. Devemos descobrir esse impulso que nos faz ajustar-nos a um padrão. A menos que, por nós mesmos, o descubramos, permaneceremos condicionados, de uma ou de outra maneira, positiva ou negativamente. Do nascimento à morte, vemos esse processo continuamente em vigor. Pode uma pessoa revoltar-se contra ele, buscar refúgio noutro condicionamento, recolher-se a um mosteiro, como fazem certos indivíduos que devotam sua vida à contemplação, à filosofia, mas o movimento é sempre o mesmo. Que mecanismo é esse que se acha em constante movimento, ajustando-se a diferentes formas de condicionamento?
O pensamento está perpetuamente condicionado, já que é reação do passado, como memória. O pensamento é sempre mecânico, facilmente deixa-se cair num padrão, numa rotina; e pensais, então, estar em extraordinária atividade – na rotina católica, na rotina comunista, ou noutra qualquer. Essa é a coisa mais fácil e mecânica que se pode fazer; e pensamos estar vivendo! Assim, embora o pensamento desfrute, em seu próprio campo, uma certa e limitada liberdade, tudo o que ele faz é mecânico. Afinal de contas, uma viagem à Lua é uma coisa perfeitamente mecânica, já que é o resultado da ciência acumulada pelos séculos em fora. O cultivo do pensamento técnico pode levar-vos à Lua ou ao fundo do mar, etc. A mente quer estar seguindo uma rotina, quer ser mecânica, pois assim há proteção, segurança, e não há perturbações. O viver mecanicamente não é apenas estimulado pela sociedade, mas também por cada um de nós, porque esta é a maneira mais fácil de viver.
Assim, o pensamento, sendo uma atividade mecânica, repetitiva, aceita qualquer forma de condicionamento que lhe possibilite continuar em sua atividade mecânica. Um filósofo inventa uma nova teoria, um economista um novo sistema – e aceitamos tal rotina e ficamos a segui-Ia. Nossa sociedade, nossa cultura, nossas inspirações religiosas, tudo parece funcionar mecanicamente, embora nos proporcione uma certa e estimulante sensação. Quando ides à missa, encontrais um determinado enlevo, uma certa emoção, que se torna o padrão. Não sei se alguma vez experimentasses esta coisa – fazei-a, uma vez, para verdes como é “engraçada”: pegai um pedaço de pau ou uma pedra – qualquer uma serve, desde que tenha alguma forma – colocai-a sobre a lareira e todas as manhãs depositai a seu lado uma flor; dentro de um mês vos tereis habituado a ver essa coisa como um símbolo religioso e já começasses a indentificar-vos com ela.
O pensamento é reação do passado. Se uma pessoa aprendeu engenharia, como profissão, pode aumentar e ajustar esse conhecimento, mas ficará fixada nesse ramo de atividade; a mesma coisa, se a pessoa se formou em medicina, etc. O pensamento tem uma certa liberdade dentro de um dado campo, mas fica sempre limitado a seu funcionamento mecânico. Estais vendo isso, não apenas verbal ou intelectualmente, porém de fato? Estais tão cônscio disso como estais cônscio de ouvir aquele trem? (barulho de um trem que passa).
Pode a mente libertar-se dos hábitos que cultivou, de certas opiniões, juízos, atitudes e valores? Quer dizer, pode a mente libertar-se do pensamento? Se isso não ficar bem compreendido, então o que vou dizer sobre o próximo assunto que vamos examinar, nada significará. A compreensão deste ponto conduz, inevitavelmente, à seguinte questão: Se o pensamento é mecânico, se conduz forçosamente ao condicionamento da mente, que é então o amor? O amor é produto do pensamento? É o amor nutrido, cultivado, pelo pensamento, dependente do pensamento?
Que é o amor? – mas, tenha-se em mente que a descrição não é a coisa descrita, a palavra não é a coisa. Pode a mente libertar-se da atividade mecânica do pensamento, a fim de descobrir o que é o amor? Para a maioria de nós, o amor está associado, ou igualado ao sexo. Essa é uma forma de condicionamento. Ao investigardes essa coisa realmente tão complexa, intricada e sumamente bela, deveis ver o quanto a palavra “sexo” condicionou a mente.
Dizemos que não queremos matar, que não iremos para o Vietnã ou outro lugar, para matar gente; mas não nos importamos de matar animais. Se vós mesmo tivésseis de matar um animal, para vossa alimentação, e vísseis quanto isso é horrível, seríeis capaz de comer esse animal? Duvido muito. Mas não vos importais que o carniceiro o mate, para vós o comerdes; quanta hipocrisia!
Perguntamos, pois, não só o que é o amor, mas também o que é a compaixão. Na cultura cristã, os animais não têm alma, foram postos na Terra por Deus, para vós os comerdes; tal é o condicionamento cristão. Em certas partes da Índia, é pecado matar – matar uma mosca, um animal, qualquer ser. Lá, portanto, não matam o mais insignificante inseto, vão ao extremo do exagero; esse é o condicionamento deles. E há os que são contra a vivissecção e, contudo, ostentam suntuosos casacos de peles – a mesma hipocrisia por toda a parte!
Que significa ser compassivo? Ser compassivo, não apenas verbalmente, mas de fato? A compaixão é questão de hábito, de pensamento, questão de repetição mecânica da ação bondosa, cortês, delicada, terna? Pode a mente, que se acha toda entregue à atividade do pensamento, com seu condicionamento, sua repetição mecânica, ser compassiva, por pouco que seja? Poderá falar de compaixão, aprovar a reforma social, ser generosa para com os “pobres pagãos”, etc.; mas, isso é compaixão? Quando o pensamento dita, quando o pensamento está ativo, pode haver algum lugar para a compaixão? – sendo a compaixão ação sem motivo, sem interesse egoísta, sem nenhuma idéia de medo, nenhuma idéia de prazer.
Assim, pergunta-se “O amor é prazer?” – o sexo, decerto, é prazer. Nós achamos prazer na violência, achamos prazer em realizar alguma coisa importante, na arrogância, na agressividade.
Achamos também prazer em ser “importantes”. E tudo isso é produto do pensamento, produto da medição: “Eu fui aquilo” e “Eu serei isto”. O prazer (no sentido em que dele estamos falando) é amor? Como pode a mente que se acha toda entregue ao hábito, à medição e à comparação, saber o que é amor? Podemos dizer que o amor é isto ou aquilo – mas tudo isso é produto do pensamento.
Dessa observação vem a questão. Que é a morte? Que significa isto – morrer? Morrer deve ser a mais maravilhosa das experiências! Deve significar que uma coisa chegou completamente a seu fim. O movimento que fora desencadeado – conflito, luta, confusão, desesperos e frustrações – cessou subitamente. A atividade do homem que quer tornar-se famoso, que é arrogante, violento, brutal – essa atividade é interrompida. Já notastes que tudo o que tem continuidade psicológica se torna mecânico, “repetitivo”? Só quando cessa a continuidade psicológica, surge alguma coisa totalmente nova; isso podeis observar em vós mesmo. Criação não é a continuidade do que é ou do que foi, mas o findar dessa continuidade.
Ora, pode-se morrer psicologicamente? Entendeis esta pergunta? Podeis morrer para o conhecido, morrer para o que foi – não com o fim de vos tornardes outra coisa – sendo esse morrer o fim do conhecido, a libertação do conhecido? Afinal de contas, a morte é isso.
O organismo físico, naturalmente, morrerá; dele se abusou, foi submetido a maltrates e frustrações; comeu e bebeu coisas de toda espécie. Vós sabeis de que maneira viveis, e pelo mesmo caminho continuareis até ele (o organismo físico) perecer. O corpo, por motivo de acidente, de velhice, de doença, da tensão da constante batalha emocional, no interior e no exterior, se deforma, torna-se feio, e morre. Nesse morrer há autocompaixão, e ela existe também quando outra pessoa morre. Quando morre alguém que pensamos amar, não há em nossa tristeza uma grande porção de medo? Porque nos vemos sós, abertos a nós mesmos, sem ninguém para nos amparar, nos dar conforto. Nossa tristeza é toda mesclada dessa autocompaixão e desse medo e, naturalmente, nessa incerteza, aceitamos qualquer espécie de crença.
A Ásia inteira crê na reencarnação, no renascer em outra vida. Se indagamos o que é que vai renascer na próxima vida, deparam-se-nos dificuldades. Que é que vai renascer? Vossa pessoa? Que sois vós? – um monte de palavras, de opiniões, apego a vossas posses, a vossos móveis, vosso condicionamento. Esse monte de coisas, que chamais vossa alma, vai renascer na próxima vida? Reencarnação implica que o que hoje sois determina o que sereis na próxima vida. Portanto, comportai-vos bem! – não amanhã, mas hoje, porque pelo que hoje fazeis ides pagar na próxima vida. Os que crêem na reencarnação pouco se importam com seu comportamento; trata-se de uma mera crença, sem valor nenhum. Reencarnai-vos hoje, renovai-vos hoje, e não na próxima vida! Mudai completamente esta vida, agora; mudai-a com uma grande paixão, fazei a mente despojar-se de todas as coisas, de todos os condicionamentos, de todos os conhecimentos, de tudo o que pensar ser “correto”; esvazia-a. Sabereis então o que significa morrer; sabereis então o que é o amor. Porque o amor não pertence ao passado, ao pensamento, à cultura; não é, tampouco, prazer. A mente que compreendeu o inteiro movimento do pensamento se torna sobremodo quieta, absolutamente silenciosa. Esse silêncio é o começo do novo.
Peço-vos, portanto, não aceiteis o que este orador está dizendo, mas, sim, vos sirvais dele como um espelho, no qual vos vedes refletidos tais como sois. Isso pode ser um tanto assustador, mas é necessário vos verdes realmente nesse espelho, a fim de descobrirdes o verdadeiro, sem ser conforme alguma opinião, ou segundo a experiência ou a teoria de outrem. Estamos considerando a questão das relações, questão sumamente importante, porquanto a vida, em todos os seus aspectos, é relação; a vida cessa quando não há relação. O monge que se retira para urna caverna solitária, ou uma cela, ou o que quer que seja, continua a estar em relação, ainda que não pareça. Pode estar em relação com uma idéia, um conceito, uma fórmula; ele continua num estado de relação. E “estar em relação” significa estar ativo no presente, pois de outro modo não há relação. Para a maioria de nós, “relações” significa lembranças de prazeres ou dores acumuladas nas relações com outra pessoa – nas relações entre marido e mulher, entre os filhos, etc. Assim, todas as nossas relações – se as observamos bem – baseiam-se numa imagem. E a imagem é o passado; pode-se-lhe tirar ou acrescentar alguma coisa, mas, no âmago, ela é sempre o passado. Podeis ver muito facilmente como se forma essa relação, essa imagem. Não há necessidade de examinar isso, porquanto o seu mecanismo é bastante óbvio: o pensamento, remoendo o insulto, o prazer, as exigências e apetites sexuais e sua satisfação, etc., formou, a pouco e pouco, essa imagem de prazer e de dor que constitui a essência de todas as relações, sejam as relações entre o homem e a mulher, sejam as relações entre o indivíduo e a comunidade ou entre a comunidade e a nação ou o mundo. Assim, quando se está examinando esta questão das relações, torna-se naturalmente necessário compreender, por inteiro, o processo do pensar. Existe uma relação verdadeira no amor, tal como o conhecemos? No amor, que lugar cabe ao pensamento? Existe amor, se existe pensamento?
E que significação tem o prazer nas relações? – seja o prazer sexual, seja o prazer de estar em companhia de outrem, de viver com outrem, e todos os problemas daí decorrentes. Tende a bondade de observar isso em vós mesmos, em vez de vos limitardes a escutar o que digo. Porque, se o amor é prazer, quando esse prazer é contrariado, há ciúme, ódio, cólera. E pode haver ciúme quando há amor? Todavia, é isso o que acontece: dizemos “Amo-te”, e daí decorre medo, agonia, ansiedade, o desejo de dominar, de possuir, de ser possuído, de dar. Possuir é também uma forma de prazer. Tudo isso se encontra naquilo que chamamos “amor”. Se não existe amor, então que é “relações”? É bem evidente que nós não temos amor. Se houvesse amor, haveria uma educação de espécie totalmente diferente; não estaríamos destruindo os nossos filhos. Portanto, cumpre examlnarmos esta questão do prazer e, examinando-a, depara-se-nos também a questão da dor e do medo. O prazer é mantido e nutrido pelo pensamento. Este é um fato bem simples, que qualquer um, por si próprio, pode observar: a lembrança de um incidente agradável, a que o pensamento dá continuidade hoje e espera ver repetido amanhã. Nesse processo existe o medo de não o termos amanhã, e o desejo de que ele nos seja garantido.
O pensamento, pois, tem uma importância imensa em nossa vida, em nossas relações. O pensamento gera inveja, comparação, ciúme, e por essa razão não estamos de modo nenhum em relação. Quando cada ente humano vive em seu próprio isolamento, em sua própria atividade egocêntrica (ainda que seja casado, tenha filhos, relações sexuais, etc., ele está sempre isolado), como pode haver alguma espécie de relação?
Assim, quando vemos, realmente, e não teoricamente, esse fato, ou o aceitamos tal qual é, acalentamo-lo, damos-lhe polimento e uma enorme significação, ou rejeitamos de todo a sua estrutura, negamos toda essa tradição de relações geradoras de tanto ódio, e ciúme, e antagonismo. E, então, vemo-nos também forçados a perguntar: Porque existe tanto sofrimento neste estado de relação? Porque tem o coração humano de arcar com tão pesado fardo, em todo o mundo, da aldeia mais atrasada à urbe mais “sofisticada”? Pode o sofrimento terminar?
Muito importa fazer esta pergunta. Não devemos acostumar-nos com o sofrimento; e isso é o que faz a maioria de nós. Com ele nos conformamos, aceitamo-lo, ou adoramo-lo, à maneira dos cristãos, simbolizado na Igreja. Mas, nunca indagamos porque existe esse sofrimento; não apenas o sofrimento individual, mas o sofrimento humano, a dor da humanidade, a dor do mundo. O homem que não tem o que comer nem onde abrigar-se é um ente oprimido, sofredor. E o opressor é igualmente sofredor. E sofredor é o sacerdote, tanto quanto o negociante; toda a humanidade leva essa pesada carga de sofrimento. E nós o aceitamos como parte de nossa existência. Quando “aceitamos” qualquer coisa, seja uma coisa muito bela que vemos num quadro, sejam os contornos da montanha ou a árvore toda florida -quando aceitamos qualquer coisa e com ela nos habituamos, nossa mente e nosso coração se embotam, se entorpecem. E nesse estado não existe inocência.
Assim, é possível acabar com o sofrimento? Tem um ente humano, que vive neste mundo, com família, filhos, que vive no isolamento, no desespero, na ansiedade, cheio de “sentimentos de culpa”, etc. – tem esse ente humano alguma possibilidade de libertar-se do sofrimento? Quer dizer, é possível analisar todo o problema do sofrimento – como vem ele, de que fonte brota, como tem continuidade em nossa vida, escurecendo-nos os olhos, o coração, a fala, a visão das coisas? Há necessidade de o analisarmos, passo por passo, examiná-lo, descobrir-lhe a causa? E quando se descobre e compreende a causa do sofrimento, ele se acaba? Claro que não; isso nunca aconteceu. Deve haver, portanto, uma maneira diferente de se alcançar o fim do sofrimento, a compreensão do sofrimento, do sofrimento que o amor produz, do sofrimento que há quando não somos amados pelo ente que desejamos amar, do sofrimento que nos oprime o coração. Pode esse sofrimento terminar, para que possamos viver como seres humanos, com deleite, com beleza, com felicidade, com a Verdade? Isto não é nada de enigmático, procedente do “misterioso” Oriente: é um problema humano.
Antes de tudo, para se pôr fim ao sofrimento é necessário compreender a natureza do tempo, porquanto nós aceitamos o tempo como um meio de superar dificuldades, de resolver dificuldades. O sofrimento existe, e nós dizemos: gradualmente, através do tempo, poderemos, de alguma maneira, afastá-lo de nós. O sofrimento tem fim por meio de tempo – do tempo psicológico e também do tempo cronológico? No tempo cronológico, poderemos habituar-nos com ele, ir-nos conformando com ele, gradualmente, dia por dia. Mas, psicologicamente, interiormente, dizemos para nós mesmos: “Dele me livrarei lentarnente, ou tratarei de esquecê-lo, de racionalizá-lo, de fugir dele.” Positivamente, só há uma maneira de acabar com o sofrimento – mas não por meio da análise, da fuga, da racionalização, e, sim, enfrentando-o, olhando-o, pondo-nos em completa comunhão, em integral relação com ele.
Atentai para isto: quando olhais uma árvore, nunca o fazeis a não ser com a imagem que tendes dessa árvore, com o conhecimento botânico que dela tendes. Vossos olhos a vêem através da imagem do conhecimento, da lembrança ou do prazer; nunca a olhais sem a imagem, sem pensamento, nunca a olhais simplesmente. E tenho certeza de que nunca olhastes vossa esposa ou marido dessa maneira, isto é, sem a imagem que tendes a respeito dela ou dele. E quando olhais para a nuvem, para a ave, para a luz refletida na água, sem a imagem, estais então diretamente em contato com a coisa, não há espaço entre vós e a coisa que estais observando. Fazei-o, uma vez, e vereis, por vós mesmos, o que acontece. O intervalo de tempo entre o observador e a coisa observada, a distância, o espaço, passa por uma extraordinária mudança. Da mesma maneira, olhai o sofrimento, sem tratar de evitá-lo ou de acalentá-lo; olhai-o, ponde-vos inteiramente em contato com ele. E com ele só estareis em contato se lhe dispensardes toda a atenção e cuidado; e só podeis dispensar-lhe toda a atenção se vossa mente estiver quieta. Quando não há resistência ao sofrimento, vê-se que ele passa por uma transformação total; mas isso não significa que aceitais o sofrimento, que com ele vos identificais. Vós sois o sofrimento; não há “vos” e o “sofrimento”. O observador, o pensador, é o pensamento. Ao perceberdes esse fato com o máximo de clareza – não como idéia, porém como realidade, como uma coisa que apalpais, tocais, vedes – notareis que o medo, bem como o sofrimento, chega ao seu fim quando entramos em direto contato com ele.
Cumpre-nos também descobrir individualmente o que é o amor. Como sabeis, muito se fala a respeito dele. Como tem sido deturpada esta palavra, pelo político, pelo teórico, pelo sacerdote, pelo marido, pela mulher – como os entes humanos a têm deturpado, esta bela palavra! Ela está fortemente “carregada”. E para descobrir o que ela significa, não intelectualmente, porém entrando em direto contato com ela, nada se deve fazer. Se alguma coisa se faz, trata-se de ação do pensamento, e o pensamento é velho. O pensamento funciona sempre no campo do “conhecido”. E só quando se está libertado do “conhecido” pode haver inocência, pode haver amor. Compreendeis? Podeis aprender essa frase, mas a palavra não é a realidade. Isso significa, com efeito, que, para amar, não deve haver medo, não deve haver sofrimento. Não se trata aqui do amor por um ou do amor por todos, porém do amor puro e simples. E este só pode nascer quando se compreende inteiramente a atividade do “eu”, do “ego”, com todas as suas invenções, sua solércia, seus absurdos; quando se entra realmente em contato com a futilidade do pensamento.
O pensamento tem seu lugar próprio, tecnologicamente; se não sabeis para onde vos estais dirigindo, não conseguireis chegar a vossa casa; tendes de saber o caminho para lá. Mas, se o amor é produto do pensamento, então, nele se encontra dor, ódio, inveja, divisão. Assim, em verdade, amar significa morrer, não? Morrer para tudo o que se conhece como sendo “eu”. Mas, ninguém quer morrer dessa maneira. Somos todos excessivamente egoístas, excessivamente egocêntricos, com nossas opiniões e juízos, nossa pátria, nossos deuses e crenças. Seria maravilhoso se pudéssemos lançar fora tudo isso, não pela força da vontade ou da determinação, porém simplesmente, vendo-o com olhos que nunca foram contaminados pelo passado, vendo-o de maneira totalmente nova! Quer dizer, vendo o “ego”, o “eu”, com olhos límpidos. Um dos nossos problemas é que somos muito velhos, não fisicamente, talvez, porém velhos em tradição, bem no fundo de nós mesmos, historicamente. Sendo tão velhos, não nos renovamos; a renovação não pertence ao tempo; é o fim do ontem. E, quando finda o ontem, existe o amor nas relações.
18 de maio de 1968.
Autoconhecimento não significa acumular conhecimentos sobre si próprio; significa observar a si próprio. Se aprendo acumulando conhecimentos, nada aprendo a respeito de mim mesmo. Há duas maneiras de aprender. A primeira é aprender acumulando conhecimentos c, com eles, observar; isto é, observar através do crivo do passado. Observo-me, tenho experiências, acumulo conhecimentos derivados dessas experiências; olho-me através dessas experiências, isto é, olho-me mediante o passado. Essa é uma das maneiras de aprender. A outra maneira é observar o movimento de todos os pensamentos, de todos os “motivos”, e jamais acumular. Por conseguinte, este aprender é um processo constante.
Explicando melhor: Vejo que sou violento; observo minha violência e a condeno. Condenando-a, aprendi que não deve existir violência. Na próxima ocasião em que me observo como pessoa violenta, reajo de acordo com o que aprendi. Por conseguinte, não há uma observação nova, porque estou olhando a nova experiência com “olhos velhos”, com o conhecimento anteriormente adquirido. Logo, não estou aprendendo. Aprender é um movimento constante, não oriundo do passado; um movimento de momento em momento, portanto sem acumulação. Nós somos o resultado de milhares de anos de acumulação, e continuamos a acumular; e, se quiserdes compreender essa acumulação, cumpre-vos observá-la e deixar de acumular. Deve, pois, haver uma observação que seja um constante aprender sem acumulação. Acumulação é o “centro”, o eu, o “ego”; e, para compreendermos esse centro, devemos estar livres de toda espécie de acumulação; não, deixarmos de acumular num nível, para acumularmos noutro nível, com outro alvo.
Temos, pois, de “aprender o que somos”, observando-nos sem condenação, sem justificação, observando simplesmente nossa maneira de andar, de falar, as palavras que empregamos, os diferentes “motivos”, propósitos, intenções: estando totalmente vigilantes, sem escolha. E esse percebimento não significa acumulação, mas, sim, estar vigilante de instante em instante. Se, em qualquer momento, deixardes de estar vigilante, não vos preocupeis: começai de novo. Vossa mente está, assim, sempre nova. A auto-observação, pois, não se limita ao nível superficial, mas penetra o nível mais profundo, o chamado “nível inconsciente”, “oculto”. Como observar uma coisa que se acha mui profundamente radicada, oculta, fechada? Nossa consciência é tanto superficial como oculta; e temos de conhecer todo o conteúdo dessa consciência, uma vez que o conteúdo integra a consciência. Não são coisas separadas: o conteúdo é a consciência.
Por conseguinte, para se compreender o conteúdo deve haver observação sem o “observador”. Esta é uma das coisas mais fascinantes: descobrir como olhar a vida de maneira nova. Para observarmos o “oculto”, precisamos de olhos não condicionados pelo passado; não devemos ser hinduístas, cristãos, etc. Devemos olhar-nos cada vez como se fosse a primeira vez e, por conseguinte, sem acumular. Se puderdes observar-vos dessa maneira, observar vossas ações, seja no trabalho, seja no lar; observar vossos apetites sexuais, vossa ambição – observar sem condenar, sem justificar, observar simplesmente – vereis que nessa observação não há conflito de nenhuma espécie. Mas, se observardes com uma mente torturada, deformada, jamais descobrireis o que é a verdade. Entretanto, em geral, nossa mente é deformada, torturada, degradada pelo controle, pela disciplina, pelo medo.
Afirmam os psicólogos que precisamos sonhar, senão enlouqueceremos. Enquanto dormimos, deve haver sonhos, devem acontecer coisas em sonhos. Tomai interesse nesta questão, por favor, porque, em vossa vida, sonhais todas as noites. Quando dormis, há sempre alguma espécie de sonho, de atividade; e dizem aqueles especialistas que sonhar é essencial à sanidade mental do ente humano. Ora, nós vamos questionar essa afirmativa averiguar se de fato é absolutamente necessário sonharmos. Temos, pois, de rejeitar tudo o que dizem os profissionais e interrogar-nos, descobrir por nós mesmos o que são os sonhos. Não são eles a continuação das atividades de cada dia, porém em forma simbólica? Peço-vos não concordar nem discordar. Nós estamos investigando juntos, viajando juntos e, por conseguinte, não pode haver concordância nem discordância. Estamos, vós e eu, observando, indagando se é realmente necessário sonhar.
Que são os sonhos? Não são eles o movimento da vida diária – disputas, infortúnios, violência, ressentimentos – não são eles a continuação desse movimento enquanto dormimos, porém em forma simbólica – visual ou verbal? Verificai isso. Deveis saber que o cérebro necessita de ordem, para funcionar racionalmente. Já alguma vez, antes de dormir, passastes em revista o dia – o que fizestes, o que dissestes, os erros cometidos, etc.; já alguma vez passastes em revista o dia, antes de dormir? Porque é necessário fazê-lo? Porque, se não o fizermos conscientemente, enquanto despertos, a mente consumirá energia, durante o sono, para pôr a si própria em ordem.
Estais-me seguindo? A ordem é necessária na vida de cada dia. O cérebro exige uma vida com ordem, uma vida sã, senão ele não funcionará eficientemente. E ordem é virtude, pois, se não sois virtuoso, se estais em desordem, como pode o cérebro funcionar? O cérebro só é capaz de funcionar impecavelmente quando há nele segurança e ordem.
Assim, enquanto dormis, enquanto o corpo dorme, o cérebro tem de pôr-se em ordem, porque, no dia seguinte, irá enfrentar de novo a desordem; por conseguinte, necessita de um meio de extinguir a desordem, de colocar-se em ordem. Esse meio são os sonhos. Mas se, durante as horas de vigília, produzirdes a ordem, então, quando o corpo físico estiver dormindo, o cérebro poderá viver uma vida totalmente diferente. Isso faz parte da meditação. A pessoa que não tem ordem, que se acha em desordem, dizendo uma coisa e fazendo outra, não pode de modo nenhum compreender o que é meditação. Ora, como podeis vós, como pode o cérebro, a mente, estabelecer a ordem durante o dia? Ordem é virtude; não a virtude da moralidade social, mas a virtude da ordem.
A ordem não é uma fórmula traçada pelo Gita, pela Bíblia, pelo instrutor. A ordem é uma coisa viva, e não uma fórmula. Se tendes alguma fórmula, há desordem entre o que sois e o que deveríeis ser; por conseguinte, nessa contradição há conflito. Conflito é desordem. –Assim, só tereis possibilidade de descobrir o que é a ordem se compreenderdes a desordem. Nossa vida de cada dia, tal como a estamos vivendo, é desordem, não achais?
Se sois realmente honesto perante vós mesmo, podeis dizer que vossa vida está perfeitamente em ordem, que viveis sã, lúcida, harmoniosamente? Não podeis, decerto; se assim fosse, não estaríeis aqui. Seríeis entes humanos livres, maravilhosos entes humanos, criadores de uma sociedade diferente. Como seres humanos, estamos em desordem, em contradição. Observai, pois, vossa desordem e contradição, sem nada rejeitar, nada justificar; vede como estais assustado, como sois invejoso, como ambicionais prestígio, posição, como temeis vossa esposa ou marido, como dependeis do que vosso vizinho pensa de vós. Observai esse conflito, essa luta constante, sem justificar nem condenar. Observai totalmente essa desordem, e vereis então surgir uma ordem verdadeiramente harmoniosa, toda movimento, e vida, e vigor. Vereis que, em todas as horas do dia, estareis pondo em ordem a vossa vida, nela estabelecendo uma ordem matematicamente precisa. E, para compreenderdes essa ordem, tendes de compreender o medo e o prazer, que examinamos ligeiramente na reunião anterior. E. compreendendo tudo isso, sem escolha, vereis que, quando dormis, vossa mente não tem sonhos. Em conseqüência, a mente, o cérebro se renova durante o sono e, na manhã seguinte, o cérebro tem urna extraordinária capacidade. (Faculdade de receber e reter – power of receiving and retaining – Dic. Funk & Wagnals – N. do T.)
Isso faz parte da autocompreensão. Deveis amá-lo, devotar-lhe vossa vida – devotar vossa vida à compreensão de vossa vida, porque vós sois o mundo, e o mundo é vós; portanto, se vos transformardes, transformareis o mundo. Esta não é uma mera idéia intelectual, porém uma coisa de que deveis compenetrar-vos ardorosa e apaixonadamente. E a meditação liberta tremendas energias.
Pensais que, para se alterar o ambiente, necessita-se de algum sistema ou método. Graças ao método, ao sistema, pode-se atuar eficientemente. Se desejo alterar o ambiente, preciso planejar o que cumpre fazer. Se desejais construir uma casa, tendes de traçar o respectivo plano. (Krishnamurti está apenas citando os argumentos dos que pensam ser necessário um sistema ou método para se efetuar a transformação – N. do T.) Ora, ao estabelecer-se um sistema, que sucede? Que sucede, exteriormente? São necessários uns poucos indivíduos competentes para pôr em prática o sistema. E que acontece, então? Esses indivíduos se fazem bem mais importantes do que o sistema ou a idéia de alterar o ambiente. Já não notastes isto? Tornam-se os mandões, os que utilizam o sistema para tornar a si próprios importantes à maneira dos políticos por este mundo fora. Prestai atenção a isto, por favor. Para efetuar-se a mudança do ambiente, necessita-se de um grupo de indivíduos competentes, munidos de um sistema. Mas, esses indivíduos competentes são entes humanos como nós outros, sujeitos à cólera, ao ciúme, à inveja, desejosos de posição. Já tendes observado isso, não? Usam, pois, o sistema para seus próprios fins, e esquecem-se do resto.
E, agora, queremos um sistema de meditar. Vede a diferença entre estas duas coisas: sistema e meditação. Pensamos que seríamos capazes de meditar, de pensar, de investigar eficientemente, se tivéssemos um sistema. Mas, que implica um sistema? Tende, pois, bem clara na mente a distinção entre ambas as coisas. Se desejais alterar o ambiente físico, necessitais de um grupo de indivíduos competentes para pôr em prática o sistema. Tais indivíduos deveriam ser impessoais, não egotistas, não cuidar de encher os próprios bolsos – figurada e fisicamente falando. Por conseguinte, os entes humanos importam mais do que o sistema. Percebeis isto?
O mesmo dizemos em relação à transformação de nós mesmos, ou seja que só mediante um sistema poderemos transformar-nos, só mediante um sistema poderemos aprender a meditar. Porque o sistema parece conferir eficiência. Confere-a, de fato? Como sabeis, todo guru, na Índia e noutras partes, oferece um sistema de meditação. Ora, os sistemas implicam repetição, prática, observância de um método. Se seguis algum método, sistema ou prática, essa coisa se torna uma rotina – a que procurais fugir por meio de sexo ou de outras maneiras. Por conseguinte, evitai a todo preço os sistemas de meditação, porque uma mente mecânica não tem possibilidade alguma de descobrir o que é a verdade. A mente mecânica pode tornar-se bem disciplinada, ter muita ordem, mas essa ordem está em contradição com a ordem de que falamos, porque, nessa espécie de ordem existente na repetição, há contradição entre o que sois e o que deveríeis ser – o ideal. Existe, pois, essa contradição. E onde há contradição, há deformação; e a mente deformada, torturada, jamais descobrirá qualquer coisa nova. Portanto, não adoteis nenhum sistema, não sigais nenhum guru.
Certa vez, um famoso guru veio visitar-nos. Um episódio engraçado. Alguns de nós estávamos sentados num pequeno colchão e, por cortesia, nos levantamos e convidamos “o grande homem” a sentar-se naquele colchão. Sentou-se. Trazia um cajado. Depositou o cajado diante de si e ficou sentado, muito solene, como convém a um guru. E pôs-se a dizer-nos o que devíamos fazer – só porque estava sentado um pouco mais alto que nós (Os demais se sentaram no chão – N. do T.), no pequeno colchão que por polidez lhe oferecêramos. Vaidade, desejo de poder e posição, e de seguidores… Tais indivíduos jamais descobrirão o que é a Verdade. Só acharão o que desejam: sua própria satisfação.
Não há sistema de meditação. Se compreenderdes isso, vossas mentes se tornarão despertas, penetrantes, capazes de descobrir. Mas, que desejais descobrir? Nós, em maioria, desejamos experiências diferentes das experiências ordinárias, de todos os dias. Queremos “experimentar” um transcendental estado de “iluminação”, A palavra “experiência” significa “passar por” (um certo estado), e, ao desejardes “experiências transcendentais”, isso quer dizer que estais cansado do viver diário. Todos os que tomam drogas supõem que, por meio delas, terão experiências extraordinárias. Em suas “viagens” (Gíria dos viciados em drogas, ou seja o estado de “clarividência” provocado pela droga – N. do T.), suas experiências são expressões de seu próprio condicionamento. As drogas lhes dão uma certa vitalidade, uma certa lucidez, que nenhuma relação têm com o esclarecimento ou “iluminação”. Deste modo, por meio das drogas jamais se iluminarão.
Assim, que buscamos nós? Que deseja o homem? Ele vê o que é sua vida – tédio, rotina, um campo de batalha, luta constante, nunca um momento de paz, a não ser, talvez, ocasionalmente, por meio do sexo ou de outra coisa. Daí conclui que a vida é transitória, a vida é mutável e, portanto, deve haver uma coisa superior e permanente; essa permanência ele deseja, deseja algo diferente da mera rotina física, da mera experiência de cada dia. A essa coisa ele chama “Deus”. Conseqüentemente, crê em Deus; e todas as imagens e ritos baseiam-se nessa crença. A crença é produto do medo. Se não há medo, podeis ver a folha, a árvore, o céu estrelado, a luz, os pássaros… Há, então, beleza, e, por conseguinte, bondade; e onde está a bondade, aí se encontra a Verdade.
Cumpre, pois, compreender o viver diário. Precisamos compreender por que razão nossa vida é tão mecânica, porque seguimos outrem, porque cremos, porque não cremos, porque lutamos. Sabemos ser isso o que se está passando sempre em nossa vida cotidiana, e desejamos fugir dessa espécie de vida. Eis porque desejamos experiências mais amplas e profundas. E os livros, os gurus, os instrutores, prometem-nos a “iluminação”, esse estado extraordinário, Os sistemas no-la oferecem: “Praticai estas coisas, e a alcançareis; segui este caminho, e lá chegareis” – como se a Verdade fosse uma coisa fixada num lugar, como uma estação, aonde levam muitos caminhos.
Não há nenhum caminho e nenhuma Verdade fixada num ponto; por conseguinte, necessitais de uma mente sobremodo desperta, vigilante, capaz de aprender.
E temos, em seguida, a questão da concentração. Não sei quem vos diz tais coisas – que precisais de concentrar-vos, de aprender a controlar o pensamento, reprimir vossos desejos, nunca olhar para uma mulher ou um homem. Não sei porque prestais ouvidos a tais pessoas. já alguma vez vos concentrastes, isto é, fixastes a atenção em alguma coisa? Quando um colegial deseja olhar pela janela, para ver o movimento das folhas, ver a árvore e o transeunte, o professor lhe diz: “Olhe para o livro, não olhe para a rua”. Isso é concentração – focarmos a atenção e erguermos uma muralha em torno de nós para não sermos perturbados. A concentração se torna exclusão, resistência. Percebeis isto? Nessa concentração há sempre batalha. Desejais concentrar-vos e vossa mente foge, vosso pensamento se põe a perseguir isto ou aquilo, e, conseqüentemente, há conflito; se, entretanto, durante o dia, prestardes atenção, ainda que por poucos minutos de cada vez, se ficardes totalmente atento – com a mente, com o corpo, o coração, os olhos, os ouvidos, o cérebro – vereis que não há limites à atenção, não há resistência. Nesse estado de atenção, não há contradição. Prestai atenção e, em seguida, largai-a; recomeçai, tornai a “pegá-la”, para que a atenção seja cada vez sempre nova; sabereis então quando há desatenção, pois no estado de desatenção há conflito; observai o conflito, prestai-lhe toda a atenção, tomai pleno conhecimento dele, para que vossa mente se torne sobremodo viva, “não mecânica”. Isso faz parte da meditação.
Também vos dizem que deveis adquirir uma mente silenciosa, não é verdade? Este mesmo orador já vos disse tal coisa. Esquecei o que ele disse, mas vede por vós mesmo porque deve a vossa mente estar quieta, em silêncio. Vede-o por vós mesmo. Para verdes qualquer coisa com clareza, vossa mente não deve estar “tagarelando”. Se desejo escutar o que estais dizendo, minha mente deve estar quieta, não? Se desejo compreender o que estais dizendo, preciso escutar-vos. Percebeis? Por conseguinte, para escutar, para observar, a mente deve estar quieta. Só isso, e nada mais.
Ora, perguntais, corno pode a mente ficar tranqüila, se está sempre “tagarelando” a respeito disto e daquilo? Se tentais deter a “tagarelice”, essa tentativa redunda em conflito. A mente habituou-se a tagarelar, a falar entre si ou com alguém, a usar palavras e mais palavras, infinitamente. E se tentais deter essa torrente de palavras pela ação da vontade, surge contradição.
Por conseguinte, descobri porque tagarela a mente, investigai esse fato, compreendei-o. O seu tagarelar não tem muita importância. Mas, porque tagarela a mente? Porque precisa estar sempre ocupada com alguma coisa. Porque precisa estar sempre ocupada? Estou fazendo esta pergunta por vós, mas tratai de descobrir isso, perguntei o que aconteceria se a mente não tagarelasse, não se conservasse ocupada. Se vossa mente não estivesse ocupada, que aconteceria? Ver-se-ia diante do vazio, não é verdade? Se esse hábito cessasse subitamente, vos sentiríeis confuso.
Aquele vazio é o medo de vossa própria solidão. Desse medo, dessa solidão, desse vazio, tentais fugir, tagarelando ou ocupando-vos com alguma coisa. Assim, penetrai bem fundo nessa solidão, não tenteis reprimi-la ou dela fugir; observara simplesmente. Mas, só podeis observá-la com a mente quieta, porque, no momento em que a condenais, no momento em que dizeis “não devo tagarelar”, tendes conflito. Entretanto, se apenas observardes a solidão, descobrireis que vossa mente, em presença desse vazio, fica completamente só.
Há diferença entre solidão e “estar só”. Solidão é isolamento, total isolamento; e no viver cotidiano estamos sempre a isolar-nos. Em vossas atividades diárias, estais sempre a isolar-vos; podeis ser casado, dormir com vossa mulher, mas que está acontecendo? Tendes vossas próprias ambições, vossa avidez, vossos problemas, e ela tem os seus; ambos procuram estabelecer uma relação entre problemas diferentes. A atividade egocêntrica vos está isolando, e daí esse sentimento de aterradora solidão.
Compreendendo isso, ficais, então, só. Esse “estar só” significa total rejeição da autoridade – de toda autoridade espiritual, da autoridade de outrem ou da autoridade de vossos conhecimentos, acumulados como experiência, que é o passado. Rejeitando totalmente, em vós mesmos, a autoridade, já não seguis nenhum sistema; e, compreendendo o medo e o prazer, há, então, nessa compreensão, alegria. A alegria nada tem em comum com o prazer. Podeis ter um momento de grande alegria, mas, se ficais pensando nessa alegria, a reduzis a prazer.
A ordem não é uma fórmula; ela vem com a compreensão da desordem – que é a vossa vida. A virtude é uma coisa viva, como a humildade; não se pode cultivar a humildade. Graças a essa compreensão, a mente se torna sobremodo clara e, portanto, só. Surge então aquele silêncio não resultante de disciplinamento, e que não é o oposto do barulho – silêncio sem causa e, por conseguinte, sem começo nem fim. Vem então a essa mente, que se acha num estado de ordem absoluta e, portanto, completamente só, ou seja num estado de inocência – o que significa que ela jamais pode ser ferida – vem então a essa mente um maravilhoso silêncio.
O que nesse silêncio se passa é indescritível. Se descreves o que sucede, vossas palavras não são a coisa – a coisa descrita. A descrição não é a coisa descrita. Por conseguinte, a Verdade, aquela bem-aventurança, aquele inefável silêncio e seu movimento, não há palavras que possam descrevê-los. Se chegastes até aí, estais então esclarecido, não buscais mais nada, não desejais nenhuma experiência; sois luz. Esse é o começo e o fim da meditação.
Madrasta, 13 de janeiro de 1971.
A questão, pois, é se há possibilidade de ver a coisa em seu todo imediatamente, e com esse ato de ver pôr-lhe fim.
Vê-se de maneira total, quando o problema é suficientemente urgente, não só para a própria pessoa, mas também para o mundo. Há guerra, externamente, e há guerra internamente, dentro de cada um de nós; é possível acabarmos com ela de imediato, voltarmos-lhe as costas, psicologicamente? Ninguém pode responder a esta pergunta senão vós mesmo – isto é, quando a ela respondeis sem dependerdes de nenhuma autoridade, de quaisquer conceitos intelectuais ou emocionais, quaisquer fórmulas ou ideologias. Mas, como dissemos, isso exige muita seriedade e séria observação – observação, quando estais sentado num ônibus, de tudo o que vos cerca; observação daquilo que está diante de vós mesmo, a mover-se, a transformar-se; observação, sem motivo algum, de todas as coisas tais como são. O que é tem muito mais importância do que o que deveria ser. Como resultado desse zelo, dessa atenção, talvez venhamos a saber o que é amar.
INTERROGANTE: Do que dizeis, devo entender que temos de meditar, mas nossa mente é impedida de fazê-lo porque está sempre passando automaticamente de um pensamento para outro, de modo que não podemos observar o que se passa ao redor de nós? Significa isso que, em primeiro lugar, devemos observar o que se passa em nossa mente?
KRISHNAMURTI: “Para observar, temos de meditar” – eu não disse isso. Observar é meditação, e isso não significa que para observar temos de meditar. Observar é uma das coisas mais difíceis que há. Observar, por exemplo, uma árvore, é dificílimo, porque temos idéias, imagens relativas à árvore e essas idéias – conhecimentos botânicos, etc. – nos impedem de olhar a árvore. Observar vossa esposa ou marido é mais difícil ainda, porque também tendes uma imagem relativa a vossa esposa e ela tem uma imagem a vosso respeito, e a relação existente é entre essas duas imagens. É o que em geral se chama “relações”: dois conjuntos de lembranças, de imagens, com relação entre si. Vede quanto isto é absurdo. As relações que em geral temos são uma coisa morta. Observar significa, com efeito, estar cônscio da interferência do pensamento; perceber como a imagem que tendes da árvore, da pessoa, do que quer que seja, intervém no ato de olhar. Observai como vos esqueceis do objeto que estais olhando – a árvore, a pessoa; e vede porque o pensamento interfere, porque tendes uma imagem de tal pessoa. Porque tendes uma imagem de quem quer que seja? Aqui estamos, vós e eu, a olhar-nos – eu, o orador, e vós, os ouvintes. Vós tendes unia imagem relativa ao orador, infelizmente; mas eu, porque não vos conheço, nenhuma imagem tenho de vós e, por conseguinte, posso olhar-vos. Mas não posso olhar-vos se digo de mim para comigo: vou servir-me destes ouvintes para alcançar poder, posição, para explorá-los, tomar-me um homem famoso – sabeis do resto – de todas as futilidades que os entes humanos cultivam. Assim, observar significa: observar sem a interferência de nosso fundo. Entendeis? Todo o nosso ser, que está a olhar, é o nosso fundo – cristão, francês, intelectual. Pela observação, descobre-se esse fundo; e observá-lo sem nenhuma escolha, nenhuma inclinação, é uma disciplina tremenda – não a absurda disciplina de ajustamento, de imitação. Essa observação torna a mente sobremodo ativa, sobremodo sensível. Isso, em seu todo, é meditação. Não se entenda, pois, que “para observar é preciso meditar”, porém, antes, que é quando observamos, que todas essas coisas sucedem. Isso, em seu todo, é meditação, e não um certo método de controle do pensamento, assunto de que trataremos noutra ocasião.
INTERROGANTE: Podeis explicar, com precisão, como se relacionam o prazer e o medo?
KRISHNAMURTI: Medo – Já estiveste alguma vez em contato direto com o medo? Já estiveste alguma vez diretamente em contato com alguma coisa, uma árvore, uma flor, um ente humano; diretamente, e não através da imagem? Quando olhais uma árvore, no parque, há sempre o observador e a coisa observada: vós estais a observar a árvore, e há um espaço entre o observador e a coisa observada. Estar em contato direto (podeis tocar a árvore, mas isso não é contato, nem o é o identificar-vos com a árvore; não se trata disso, que é uma outra espécie de ginástica mental) – estar em contato direto é coisa de todo diferente, é não ter espaço algum. É o que se verifica quando se tomam certas drogas – L.S.D., etc. – o espaço desaparece. Mas essa é uma experiência inteiramente diferente, pois aquele espaço volta, obrigando a pessoa a repetir a droga, etc., e o resultado é que ela fica a deteriorar-se, a cansar-se cada vez mais da droga e a obter efeitos cada vez menores. Mas, quando a pessoa é capaz de observar sem o observador, quer dizer, sem o fundo, sem conceitos ideológicos, sem a memória, o espaço desaparece então totalmente, entre as pessoas, e nesse estado talvez não haja medo, porém uma coisa chamada (podemos servir-nos da palavra “verbalmente”) amor. Teremos de considerar a questão do medo noutra ocasião.
INTERROGANTE: Parece-me que até a nossa presença aqui é uma espécie de paradoxo, porquanto significa que estamos insatisfeitos. Isto é, eu – insatisfeito com a vida, pois vejo que nela há violência – desejando compreender essa coisa que me causa insatisfação.
KRISHNAMURTI: Não, senhor, não há entes humanos separados da violência. Quando sinto cólera, não é uma certa coisa ou pessoa que está encolerizada dentro de mim; sou eu que estou encolerizado. Não há nenhum “eu” separado da cólera. Perceber o fato real expresso por essa asserção, isto é, que eu sou a violência; percebê-lo deveras e não intelectual ou teoricamente, é pôr fim à separação entre mim e a violência, a cólera. Mas isso exige enorme atenção e muito trabalho.
INTERROGANTE: Faríeis distinção entre prazer, ódio e violência?
KRISHNAMURTI: Senhor, penso que a questão do prazer não é tão fácil de compreender. Cumpre examinar o problema, e não simplesmente negar o prazer. Não sentis prazer quando comeis ou quando dais um passeio, ou ao olhardes uma árvore, uma bela mulher, um homem belo, ou o que quer que seja? É preciso examinar de maneira completa esta questão do prazer. A vida é complexa, não? A vida é sumamente complexa, e o prazer é uma coisa complexa. Os chamados monges, os religiosos, têm dito que não devemos ter prazer; abrem a Bíblia ou o Gita, ficam a ler perpetuamente esse livro e nunca olham a vida. Mas, para compreender o prazer, temos de compreender o desejo, o deleite, a memória – a conservação das experiências que proporcionaram prazer, tanto no nível consciente como no chamado subconsciente.
Como disse, a vida é um problema complexo, e não podemos esquecer a sua complexidade dizendo: “Não quero olhá-la.” Temos de olhá-la pela maneira mais simples, sem nenhuma fórmula, nenhuma ideologia, nenhuma escolha – só simples observação.
Esta é provavelmente a primeira vez que alguns de vós estão ouvindo estas palestras, e o que se está dizendo poderá parecer-lhes grego ou chinês, mas enquanto vamos considerando e examinando estas questões, começaremos talvez a compreendê-las melhor.
Importa fazer perguntas; não só agora, porém sempre. É necessário duvidar, e nunca aceitar coisa alguma. Releva fazer uma pergunta, e talvez mais ainda fazer a pergunta correta. Fazer a pergunta correta implica que a pessoa deve estar perfeitamente cônscia dos problemas da vida – não em termos de “gostar” e “não gostar”, porém o campo inteiro da vida. Fazer tal pergunta denota grande humildade, não a humildade da vaidade, mas a humildade daquele que deseja saber. Ao fazermos a nós mesmos a pergunta correta, como resultado de profunda e inteligente investigação, então, visto que é correta, a pergunta contém sua própria resposta. Não precisamos perguntar a ninguém: já temos a resposta.
16 de abril de 1967.