Vou agora examinar esta questão do conflito. Para compreender o conflito, tendes de observar a vós mesmo. E a observação exige desvelo. Desvelo significa compreensão, afeição: como quando se cuida de uma criança, em que não há repúdio ou condenação. Cuidar de uma criança é observá-la, sem condená-la, sem compará-la. Observá-la com infinita afeição, imensa compreensão; estudá-la em todos os seus movimentos, em todas as fases de seu desenvolvimento, em suas travessuras, suas lágrimas, seus risos. O observar, pois, exige desvelo. Esse é o primeiro requisito da auto-observação; por conseguinte, nunca deve haver um momento de condenação, de justificação ou comparação, porém sempre a observação pura e simples de tudo o que está ocorrendo, a cada momento do dia, quer a pessoa se ache no escritório, ou viajando num ônibus, ou conversando com alguém, etc. Cada um deve observar a si próprio tão completamente, com tão infinito desvelo, que daí resulte a precisão, uma precisão absoluta, e não apenas idéias vagas, ação ineficaz.
Como disse, para observardes a vós mesmo, exige-se atenção completa. Uma mente que está atenta, cônscia de si própria no justo momento em que está a observar-se, está aprendendo a respeito de si mesma. Aprender é coisa toda diferente de acumular conhecimentos. Acho que isso deve ser compreendido muito cuidadosamente. A maioria de nós acumula conhecimentos. Da infância até à morte, estamos sempre registrando; nossa mente se tornou uma espécie de fita de gravação, na qual tudo se vai registrando. De acordo com tal registro, nós atuamos, pensamos, reagimos; e a esse registro vamos acrescentando coisas e mais coisas, todos os dias, consciente ou inconscientemente. Guardamos toda experiência, toda informação, todo incidente, toda lembrança. E a isto chamamos experimentar, aprender. Mas isto, em absoluto, não é aprender; aprender é coisa de todo diferente. No momento em que se começa a acumular, deixa-se de aprender. Pois só a mente que está fresca, que é nova, só a mente que observa com atenção, aprende.
Penso que devemos perceber a diferença entre estas duas coisas. O conhecimento técnico é cumulativo. A ele vai-se acrescentando mais e mais, e é com base nesse conhecimento que atuamos. Se sois engenheiro, se sois físico, tratais de acumular a maior soma possível de conhecimentos para trabalhar com base nesse conhecimento acumulado. E, por essa razão, nunca há liberdade. É sempre um agir de acordo com o que se aprendeu, consoante o que se adquiriu. No nível do conhecimento técnico, tal ação, tal memória, tal processo cumulativo é absolutamente necessário. Mas nós estamos falando de coisa inteiramente diferente, ou seja que o observar com atenção não implica processo aditivo. Porque, se ficamos meramente adicionando, adquirindo, então, no minuto seguinte de nossa observação, observamos com base no que temos acumulado e, por conseguinte, já não estamos observando. Compreendei isso, por favor.
É importantíssimo compreender que, quando a mente está sempre acumulando, acrescentando algo a si própria e de tal base observando, então tudo o que ela observa recebe o colorido do que antes foi aprendido, do conhecimento prévio. Essa mente, por conseguinte, é incapaz de compreender um fato novo. E a vida é sempre nova; o viver é algo totalmente novo, a cada minuto do dia. Mas perdemos esse frescor, esse extraordinário sentimento de vitalidade, de beleza, de imensidão, porque vamos sempre ao encontro da vida com nosso conhecimento acumulado e, conseqüentemente, nunca estamos aprendendo, porém apenas adicionando mais alguma coisa às já existentes; com base nesse adicionamento, observamos as coisas, na esperança de aprender.
Assim, a mente que é séria, que está bem consciente da situação mundial, percebe que o mundo se acha num estado de angustiosa confusão. Nota-se um constante declínio em todas as nações; só uns poucos são capazes de funcionar inteligentemente, em liberdade talvez; os demais se limitam a imitar – são pobres imitações dos computadores, sua ação é ineficaz. A dor, a angústia, a ansiedade, o desespero é que são fatos, e não vossas crenças, vossas esperanças, vossos deuses; o fato do desespero, da ansiedade, da extraordinária persistência do sofrimento, sofrimento sem fim; a crescente animosidade e brutalidade – eis o mundo a que pertenceis. E a função da mente verdadeiramente séria é compreender e transcender esse mundo. A mente séria deve observá-lo. Isto é, deveis observar a vós mesmos, porque vós sois o mundo; porque há em vós angústia, sofrimento, solidão, desespero, ansiedade, medo, porque sois impelido pela ambição, a avidez, a inveja – sois esse mundo. Não sois o que pensais ser – que sois Deus, etc. Isto é só absurda especulação. Tendes de partir dos fatos e tendes de aprender a respeito de vós mesmo.
Há, pois, diferença entre aprender e acumular conhecimento. O aprender é infinito, não há fim no aprender a respeito de si mesmo. E, por conseguinte, a mente que não está acumulando, porém aprendendo, é capaz de observar seus conflitos, suas tensões, suas dores e secretos desejos e temores. Se assim fizerdes, não acidentalmente, porém todos os dias, todos os minutos – e isso é possível – se vos mantiverdes em constante observação, vereis que adquirireis uma energia extraordinária. Porque então a autocontradição estará sendo compreendida.
Com a palavra “compreender” não me refiro a algo intelectual. A mente que está fragmentada nunca comprenderá nada. Quando digo que “compreendo certa coisa intelectualmente”, o que realmente estou dizendo é que ouço a palavra e compreendo a palavra; isso nada tem que ver com a compreensão. Compreensão implica não só o aspecto semântico, isto é, o sentido da palavra, mas também a apreensão do inteiro conteúdo dessa palavra e de seu significado conforme se aplica a nós mesmos. A compreensão, pois, não é uma simples questão de “cerebração” (mentation) (1) mera operação intelectual. Só podeis compreender alguma coisa, quando lhe aplicais vossa mente, vosso corpo, vossos sentidos, vossos olhos, vossos ouvidos, tudo. E dessa compreensão resulta a ação total, e não ação fragmentária, contraditória.
Nessas condições, o que interessa – principalmente àqueles que são deveras sérios – é compreender. E a vida exige seriedade, pois não se pode viver neste mundo levianamente. Não podeis estar interessado apenas em vossas próprias aflições, vossos próprios divertimentos, vossos próprios temores. Sois uma parte do mundo e deveis compreender a vós mesmo e ao mundo. Essa compreensão exige extraordinária seriedade, e isto constitui imensa tarefa. E quando sois sério, deveis levar essa compreensão ao extremo, até perceberdes tudo o que a existência implica.
E, também, o conflito é algo que temos de compreender – compreender, e não dominar. Não tenteis negá-lo, não tenteis fugir dele, porém tratai de compreendê-lo, de ver todo o seu significado, de perceber as várias contradições, na palavra, no pensamento, na ação. Em geral, vivemos vidas duplas, ou triplas, ou múltiplas! Funcionamos fragmentariamente, nosso existir é fragmentário; desejamos ser mundanos; desejamos ter todos os confortos que nos são devidos. O conforto, obviamente, é necessário; mas com esse conforto vem a exigência de segurança. Não só desejamos estar seguros em nossos empregos – reação natural e sã – mas também desejamos estar seguros psicologicamente, interiormente.
É possível estar-se em segurança psicologicamente, em algum tempo – isto é, estarmos psicologicamente seguros em nossas relações e psicologicamente seguros em relação àquilo com que estamos identificados? A segurança exterior ~ evidentemente necessária. Exteriormente, é absolutamente necessário termos morada, um lar, emprego; mas não nos contentamos com isso. Queremos estar em segurança psicologicamente, interiormente; e aí começam as nossas tribulações. Nunca indagamos se existe realmente segurança interior; entretanto, dizemos que precisamos de estar em segurança interiormente, e nasce assim a ilusão. A partir desse momento, começa a desenrolar-se uma série de conflitos, de conflitos intermináveis.
Cumpre-nos, pois, descobrir a verdade em relação a essa formidável questão da segurança psicológica – sem procurarmos saber o que outro qualquer diz. psicologicamente, vemo-nos inseguros; por essa razão criamos deuses, deuses que se tornam nossa segurança permanente! Isso gera conflitos. Compreendeis o que entendemos por “conflito”? Entendemos: a contradição; a ação fragmentária; os pensamentos que se chocam; os desejos conflitantes entre si; as exigências contraditórias; as pressões do mundo e a exigência interior de viver em paz com o mundo; a aspiração a encontrar algo além da existência diária, monótona, estúpida; o ver-nos presas na engrenagem da existência diária e desesperadora; o nunca termos uma solução para nosso desespero; a angústia imensa, não apenas pessoal, mas também a angústia do mundo, e nunca encontrarmos uma saída dessa angústia. Eis todos os fatores que geram a contradição – dos quais podemos estar conscientes ou não. Onde a mente se acha em contradição, tem de haver conflito.
E, muito evidentemente, a mente que se acha em conflito não pode ir adiante; poderá prosseguir na ilusão, mas não é capaz de avançar para descobrir se algo existe além do tempo, além da medida humana. Sem dúvida, esta é a função da religião. A função da mente religiosa é descobrir o verdadeiro. E a verdade não pode ser encontrada num templo ou num livro, por mais venerando que seja. Vós tendes de descobri-la por vossos próprios meios. Não podeis comprá-la com lágrimas, com orações, com repetições, com rituais; por esse caminho se vai ao absurdo, à ilusão, à insânia.
A mente séria, por conseguinte, deve estar cônscia desse conflito. Com “estar cônscio” quero dizer, observar, escutar. Escutar é uma arte. Com efeito, é uma arte extraordinária o escutar um som. Não sei se já escutastes um som – o som de um pássaro pousado numa árvore, ou o distante buzinar de um carro. Pelo escutar – não pelo julgar, pelo identificar tal som com determinada ave ou determinado carro ou determinado rádio da casa mais próxima, porém pelo simples escutar, vereis – se assim souberdes escutar – como vos tornareis extraordinariamente sensível. A mente se torna sobremodo alertada quando escutamos simplesmente – isto é, não interpretando o que ouvimos, não tentando traduzi-lo, não o identificando com o que já conhecemos – pois isso nos impede de escutar. Mas, se escutardes simplesmente – escutardes vossos pensamentos, vossas exigências, o desespero de vossa existência, não tentando interpretar, traduzir nada, não tentando fazer alguma coisa em relação ao que se escuta – vereis que vossa mente se tornará sobremodo lúcida.
E só a mente muito lúcida, a mente sã, racional, lógica, em que não há conflito, consciente ou inconsciente – só essa mente pode prosseguir até descobrir, por si própria, se existe uma Realidade. Só essa mente é religiosa. E só essa mente pode resolver os problemas do mundo. Os problemas do mundo são inumeráveis e se estão multiplicando. E se não fordes capaz de resolvê-los lógica, equilibrada, sãmente, com vosso espírito de todo livre de conflito, estareis apenas criando mais confusão, mais angústias para o mundo e para vós mesmo.
A primeira coisa, por conseguinte, que nos cumpre fazer é observar com atenção, todas as murmurações, então os temores, ilusões, desesperos de vosso próprio ser. E vereis então, por vós mesmo – e para isso não se necessita de provas, nem de gurus, nem de livros sagrados – se a Realidade existe. E encontrareis aí, um extraordinário sentimento de libertação do sofrimento. Ai existe a claridade, a beleza e aquela coisa que está faltando hoje à mente humana: o amor, a afeição.
Madrasta, 12 de janeiro de 1964.