A ATIVIDADE MECÂNICA DO PENSAMENTO
“A mente que compreendeu o inteiro movimento do pensamento torna-se sobremodo quieta, absolutamente silenciosa.”
Estivemos falando sobre a importância do pensamento e ao mesmo tempo de sua não importância; de como o pensamento é capaz de enorme atividade e, dentro de seu próprio campo, só tem liberdade limitada. Falamos também acerca de um estado mental totalmente descondicionado. Nesta manhã, podemos considerar esta questão do condicionamento – não apenas o condicionamento cultural, superficial, mas também considerar porque há condicionamento. Podemos investigar a natureza da mente não condicionada, da mente que transcendeu todo condicionamento. Cumpre-nos penetrar bem fundo nesta questão, a fim de descobrirmos o que é o amor. E, compreendendo o que é o amor, estaremos aptos a compreender a pleno o significado da morte.
Assim, em primeiro lugar, tratemos de averiguar se a mente pode tornar-se total e completamente livre de condicionamento. É bem óbvio que somos condicionados superficialmente pela cultura, pela sociedade, pela propaganda de que nos vemos rodeados, e também pela nacionalidade, por determinada religião, pela educação e pelas influências ambientes. Parece-me bastante fácil e simples ver como a maioria dos entes humanos, de todos os países e raças, estão condicionados pelas respectivas culturas e religiões. São eles moldados e mantidos dentro de um determinado padrão. Esse condicionamento é bastante fácil de rejeitar.
Mas, há o condicionamento mais profundo, como, por exemplo, uma atitude agressiva perante a vida. A agressividade implica tendência de domínio, busca de poder, de posses, de prestígio. Para nos libertarmos desse condicionamento, temos de mergulhar bem fundo em nós mesmos, porquanto ele é muito sutil e multiforme. Pode uma pessoa julgar que não é agressiva, mas, se declarada ou não declaradamente, ela tem algum ideal, ou opinião, ou escala de valores, existe então uma tendência para a arrogância, que se tornará gradualmente agressiva e violenta. Qualquer um pode observar isso em si mesmo. Atrás da própria palavra “agressividade” – ainda que a pronunciemos muito docemente – há um certo impulso, uma atividade furtiva e predominante, imperiosa, a qual se torna cruel e violenta. Esse condicionamento agressivo precisa ser descoberto, para vermos se o herdamos do animal ou se nos tornamos agressivos pelo prazer de nos impormos aos outros, de tomar-lhes a frente.
Outra forma de condicionamento é o que resulta da comparação. “comparamo-nos” com aquilo que consideramos nobre ou heróico, com o que gostaríamos de ser, em oposição ao que realmente somos. A atividade comparativa é uma forma de condicionamento; essa atividade, por sua vez, é extremamente sutil. Comparo-me com alguém que é um pouco mais inteligente ou fisicamente mais belo do que eu. Secreta ou abertamente, há, em vosso interior, um constante monólogo de caráter comparativo. Observai isso em vós mesmo. Onde há comparação, há sempre uma certa forma de agressividade, uma determinação de conseguir o que queremos, e, quando não o conseguimos, um sentimento de frustração, de inferioridade. Desde a infância somos condicionados para comparar. Nosso sistema educativo baseia-se na comparação – dar notas, fazer exames. Quando nos comparamos com alguém que é mais inteligente, sentimos inveja, despeito, e segue-se o conflito. Comparação implica medida; estou a medir-me, em comparação com uma coisa que se me afigura melhor ou mais nobre.
Pergunta-se: “Pode a mente libertar-se desse condicionamento social e cultural, desse medir e comparar, do condicionamento de medo, de prazer, de recompensa e de castigo? Nossas estruturas morais e religiosas baseiam-se totalmente nesse condicionamento. Por que razão somos condicionados? Vemos as influências externas que nos estão condicionando e, interiormente, a “voluntária necessidade” de sermos condicionados. Porque aceitamos tal condicionamento? Porque se deixou a mente condicionar? Qual o fator que está atrás de tudo isso? Por que razão eu, nascido num certo país, numa certa cultura, que me denomino hindu, com toda a carga de superstição e tradição imposta pela família, pela sociedade – por que razão aceito esse condicionamento? Qual o impulso existente atrás disso? Qual o fator que constantemente exige, aceita, cede ou resiste a esse condicionamento? Vemos que desejamos estar em segurança, numa sociedade que está seguindo determinado padrão. Se não observamos esse padrão, podemos perder nosso emprego, ficar sem dinheiro, não sermos considerados entes humanos respeitáveis. Contra ele nasce a revolta, e essa revolta forma o seu peculiar condicionamento – como está acontecendo com a maioria dos jovens, hoje em dia. Devemos descobrir esse impulso que nos faz ajustar-nos a um padrão. A menos que, por nós mesmos, o descubramos, permaneceremos condicionados, de uma ou de outra maneira, positiva ou negativamente. Do nascimento à morte, vemos esse processo continuamente em vigor. Pode uma pessoa revoltar-se contra ele, buscar refúgio noutro condicionamento, recolher-se a um mosteiro, como fazem certos indivíduos que devotam sua vida à contemplação, à filosofia, mas o movimento é sempre o mesmo. Que mecanismo é esse que se acha em constante movimento, ajustando-se a diferentes formas de condicionamento?
O pensamento está perpetuamente condicionado, já que é reação do passado, como memória. O pensamento é sempre mecânico, facilmente deixa-se cair num padrão, numa rotina; e pensais, então, estar em extraordinária atividade – na rotina católica, na rotina comunista, ou noutra qualquer. Essa é a coisa mais fácil e mecânica que se pode fazer; e pensamos estar vivendo! Assim, embora o pensamento desfrute, em seu próprio campo, uma certa e limitada liberdade, tudo o que ele faz é mecânico. Afinal de contas, uma viagem à Lua é uma coisa perfeitamente mecânica, já que é o resultado da ciência acumulada pelos séculos em fora. O cultivo do pensamento técnico pode levar-vos à Lua ou ao fundo do mar, etc. A mente quer estar seguindo uma rotina, quer ser mecânica, pois assim há proteção, segurança, e não há perturbações. O viver mecanicamente não é apenas estimulado pela sociedade, mas também por cada um de nós, porque esta é a maneira mais fácil de viver.
Assim, o pensamento, sendo uma atividade mecânica, repetitiva, aceita qualquer forma de condicionamento que lhe possibilite continuar em sua atividade mecânica. Um filósofo inventa uma nova teoria, um economista um novo sistema – e aceitamos tal rotina e ficamos a segui-Ia. Nossa sociedade, nossa cultura, nossas inspirações religiosas, tudo parece funcionar mecanicamente, embora nos proporcione uma certa e estimulante sensação. Quando ides à missa, encontrais um determinado enlevo, uma certa emoção, que se torna o padrão. Não sei se alguma vez experimentasses esta coisa – fazei-a, uma vez, para verdes como é “engraçada”: pegai um pedaço de pau ou uma pedra – qualquer uma serve, desde que tenha alguma forma – colocai-a sobre a lareira e todas as manhãs depositai a seu lado uma flor; dentro de um mês vos tereis habituado a ver essa coisa como um símbolo religioso e já começasses a indentificar-vos com ela.
O pensamento é reação do passado. Se uma pessoa aprendeu engenharia, como profissão, pode aumentar e ajustar esse conhecimento, mas ficará fixada nesse ramo de atividade; a mesma coisa, se a pessoa se formou em medicina, etc. O pensamento tem uma certa liberdade dentro de um dado campo, mas fica sempre limitado a seu funcionamento mecânico. Estais vendo isso, não apenas verbal ou intelectualmente, porém de fato? Estais tão cônscio disso como estais cônscio de ouvir aquele trem? (barulho de um trem que passa).
Pode a mente libertar-se dos hábitos que cultivou, de certas opiniões, juízos, atitudes e valores? Quer dizer, pode a mente libertar-se do pensamento? Se isso não ficar bem compreendido, então o que vou dizer sobre o próximo assunto que vamos examinar, nada significará. A compreensão deste ponto conduz, inevitavelmente, à seguinte questão: Se o pensamento é mecânico, se conduz forçosamente ao condicionamento da mente, que é então o amor? O amor é produto do pensamento? É o amor nutrido, cultivado, pelo pensamento, dependente do pensamento?
Que é o amor? – mas, tenha-se em mente que a descrição não é a coisa descrita, a palavra não é a coisa. Pode a mente libertar-se da atividade mecânica do pensamento, a fim de descobrir o que é o amor? Para a maioria de nós, o amor está associado, ou igualado ao sexo. Essa é uma forma de condicionamento. Ao investigardes essa coisa realmente tão complexa, intricada e sumamente bela, deveis ver o quanto a palavra “sexo” condicionou a mente.
Dizemos que não queremos matar, que não iremos para o Vietnã ou outro lugar, para matar gente; mas não nos importamos de matar animais. Se vós mesmo tivésseis de matar um animal, para vossa alimentação, e vísseis quanto isso é horrível, seríeis capaz de comer esse animal? Duvido muito. Mas não vos importais que o carniceiro o mate, para vós o comerdes; quanta hipocrisia!
Perguntamos, pois, não só o que é o amor, mas também o que é a compaixão. Na cultura cristã, os animais não têm alma, foram postos na Terra por Deus, para vós os comerdes; tal é o condicionamento cristão. Em certas partes da Índia, é pecado matar – matar uma mosca, um animal, qualquer ser. Lá, portanto, não matam o mais insignificante inseto, vão ao extremo do exagero; esse é o condicionamento deles. E há os que são contra a vivissecção e, contudo, ostentam suntuosos casacos de peles – a mesma hipocrisia por toda a parte!
Que significa ser compassivo? Ser compassivo, não apenas verbalmente, mas de fato? A compaixão é questão de hábito, de pensamento, questão de repetição mecânica da ação bondosa, cortês, delicada, terna? Pode a mente, que se acha toda entregue à atividade do pensamento, com seu condicionamento, sua repetição mecânica, ser compassiva, por pouco que seja? Poderá falar de compaixão, aprovar a reforma social, ser generosa para com os “pobres pagãos”, etc.; mas, isso é compaixão? Quando o pensamento dita, quando o pensamento está ativo, pode haver algum lugar para a compaixão? – sendo a compaixão ação sem motivo, sem interesse egoísta, sem nenhuma idéia de medo, nenhuma idéia de prazer.
Assim, pergunta-se “O amor é prazer?” – o sexo, decerto, é prazer. Nós achamos prazer na violência, achamos prazer em realizar alguma coisa importante, na arrogância, na agressividade.
Achamos também prazer em ser “importantes”. E tudo isso é produto do pensamento, produto da medição: “Eu fui aquilo” e “Eu serei isto”. O prazer (no sentido em que dele estamos falando) é amor? Como pode a mente que se acha toda entregue ao hábito, à medição e à comparação, saber o que é amor? Podemos dizer que o amor é isto ou aquilo – mas tudo isso é produto do pensamento.
Dessa observação vem a questão. Que é a morte? Que significa isto – morrer? Morrer deve ser a mais maravilhosa das experiências! Deve significar que uma coisa chegou completamente a seu fim. O movimento que fora desencadeado – conflito, luta, confusão, desesperos e frustrações – cessou subitamente. A atividade do homem que quer tornar-se famoso, que é arrogante, violento, brutal – essa atividade é interrompida. Já notastes que tudo o que tem continuidade psicológica se torna mecânico, “repetitivo”? Só quando cessa a continuidade psicológica, surge alguma coisa totalmente nova; isso podeis observar em vós mesmo. Criação não é a continuidade do que é ou do que foi, mas o findar dessa continuidade.
Ora, pode-se morrer psicologicamente? Entendeis esta pergunta? Podeis morrer para o conhecido, morrer para o que foi – não com o fim de vos tornardes outra coisa – sendo esse morrer o fim do conhecido, a libertação do conhecido? Afinal de contas, a morte é isso.
O organismo físico, naturalmente, morrerá; dele se abusou, foi submetido a maltrates e frustrações; comeu e bebeu coisas de toda espécie. Vós sabeis de que maneira viveis, e pelo mesmo caminho continuareis até ele (o organismo físico) perecer. O corpo, por motivo de acidente, de velhice, de doença, da tensão da constante batalha emocional, no interior e no exterior, se deforma, torna-se feio, e morre. Nesse morrer há autocompaixão, e ela existe também quando outra pessoa morre. Quando morre alguém que pensamos amar, não há em nossa tristeza uma grande porção de medo? Porque nos vemos sós, abertos a nós mesmos, sem ninguém para nos amparar, nos dar conforto. Nossa tristeza é toda mesclada dessa autocompaixão e desse medo e, naturalmente, nessa incerteza, aceitamos qualquer espécie de crença.
A Ásia inteira crê na reencarnação, no renascer em outra vida. Se indagamos o que é que vai renascer na próxima vida, deparam-se-nos dificuldades. Que é que vai renascer? Vossa pessoa? Que sois vós? – um monte de palavras, de opiniões, apego a vossas posses, a vossos móveis, vosso condicionamento. Esse monte de coisas, que chamais vossa alma, vai renascer na próxima vida? Reencarnação implica que o que hoje sois determina o que sereis na próxima vida. Portanto, comportai-vos bem! – não amanhã, mas hoje, porque pelo que hoje fazeis ides pagar na próxima vida. Os que crêem na reencarnação pouco se importam com seu comportamento; trata-se de uma mera crença, sem valor nenhum. Reencarnai-vos hoje, renovai-vos hoje, e não na próxima vida! Mudai completamente esta vida, agora; mudai-a com uma grande paixão, fazei a mente despojar-se de todas as coisas, de todos os condicionamentos, de todos os conhecimentos, de tudo o que pensar ser “correto”; esvazia-a. Sabereis então o que significa morrer; sabereis então o que é o amor. Porque o amor não pertence ao passado, ao pensamento, à cultura; não é, tampouco, prazer. A mente que compreendeu o inteiro movimento do pensamento se torna sobremodo quieta, absolutamente silenciosa. Esse silêncio é o começo do novo.